sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Frio em Curitiba

Morar em Curitiba é uma arte. Localizada a 934 metros do nível do mar e distante dele 110km, a cidade se orgulha de ter as temperaturas médias mais baixas do país. Por aqui não vivemos num país tropical. Por isso a arte: de manhã sair de casa com sobretudo, luvas, guarda-chuva e botas; no almoço, arrancar desesperadamente sobretudo, luvas, fechar guarda-chuva e odiar as botas. Curitibano que é curitibano está preparado para um amanhecer gélido, um meio-dia encalorado, um fim de tarde com chuva e uma noite intragável.

Em Curitiba faz frio (ou pelo menos calor não faz) de março a comecinho de dezembro. Dito assim parece exagero, mas pergunte a um curitibano se ele mantém o edredon o ano todo em sua cama. Se esta pergunta for feita no meião de janeiro, ele provavelmente dirá “imagina, faz tempo que não vejo meu cobertor em cima da cama”. Estará mentindo: curitibano fica tão desacostumado do sol que quando guarda a roupa de frio por duas semanas seguidas pensa que está de férias na Bahia.

Outro teste para saber se a pessoa mora mesmo em Curitiba ou se está apenas de passagem é perguntar quantos shorts e bermudas ela tem no armário. Via de regra, é apenas uma peça – e foi comprada na praia. Curitibano que é curitibano tem perna branca. Alguns, claro, têm a coxa.

Com tanta falta de sol, circulam em Curitiba as melhores piadinhas sobre frio e mau-tempo. São piadinhas de primeira categoria, que deixam envergonhados aqueles chistes virginais feitos com o nome da cidade, como Chuvitiba e Cu-ritiba. Veja só.

Disseram a visitantes que se aventuraram a andar no ônibus de turismo sem capota em fins de novembro e ficaram com paralisia facial pelo frio: “Caríssimos, Curitiba possui apenas duas estações: frio e Rodoferroviária.” Tomaram o caminho desta última e juraram ir para Gramado no próximo feriado da República.

Sobre a tentadora proximidade das praias de Santa Catarina deste nosso planalto paranaense, comentaram: “Tudo bem que São Pedro queira passar o feriado na praia, mas deixar o puto do estagiário tomando conta do tempo em Curitiba é sacanagem!”

Apesar de tudo, Curitiba é uma cidade maravilhosa. Gaúchos, paulistas, cariocas, mineiros, catarinenses e eventuais nordestinos vieram aos borbotões para cá. Todos querem viver neste pedaço de terra que até parece Europa. Por isso toleram frio, chuva, vento, infindáveis semanas nubladas. Curitiba é tão boa, mas tão boa que até o inverno vem passar o verão por aqui.

O lado bom da história.

Curitiba tem 30 parques e bosques. O lado bom do mau tempo é que mantém os parques bem conservados: ninguém tem coragem de frequentá-los. Num dia de sol, faz 10 graus e num dia de calor, chove. Curitibano necessita de shopping.

* Este texto não poderia ter sido escrito sem a inestimável contribuição do meu amigo fluminense Waltencir Alves de Oliveira, cujo trabalho o trouxe a viver em Curitiba. As piadinhas da estação e de São Pedro, foi ele quem me contou.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A ideologia de Cazuza e a filosofia dos cigarros Free.

Quando eu tinha quinze anos em 1988, Cazuza lançou a música Ideologia. Discutia-se que os jovens poderiam votar a partir dos 16 anos e que isto seria uma estratégia da burguesia (nossa, estou usando a palavra burguesia. Viu como eu tinha mesmo 15 anos na década de 80?) para obter mais votos para os partidos de direita.

O que os jovens fizeram então foi tirar seu título de eleitor e votar na esquerda. Eu mesma, na minha primavera, fiz campanha para o Roberto Freire, PCB à época, embora não tenha completado idade suficiente para votar naquele pleito.

Ao mesmo tempo que discutíamos política, deixávamos pouco a pouco para trás o medo de uma Terceira Guerra Mundial com bombas atômicas e o extermínio da humanidade. Alguns de nós comemorava seu Baile de Debutantes ou ia para intercâmbios no exterior.

Nos anos 80 – hoje tão cortejados pela molecada da geração Y – era difícil você ter uma ideologia 100%, porque nossas lutas de classe eram, em grande medida, as lutas de nossos pais. E o futuro era (vagamente) mais promissor que ameaçador. Então, se Cazuza queria uma ideologia para viver, nós queríamos apenas poder dirigir aos 16 anos também, por questões de paridade de direitos.

Acho que foi a partir deste cenário cambiante que, passadas duas décadas, a palavra ideologia deixou de ser desejada. Da luta de classes, agora se luta por sua própria felicidade. As pessoas foram buscar ser saudáveis, ser jovens, ser belas, ter prazer, ter sucesso, ter paz de espírito. Hoje em dia, apenas os muito velhos, ou os muito rebeldes, ou os muito anacrônicos têm ideologia: todos querem é seguir uma filosofia de vida.

Eu mesma entro no rol: busquei o yoga como filosofia e deixei de lado minhas ideologias adolescentes. Filosofia é mais brando, não pressupõe confronto. Quem primeiro percebeu isso foi a publicidade. Sei que atualmente é errado elogiar este tipo de anúncio, mas a propaganda mais bacana de minha geração foi a dos cigarros Free, “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”.

Depois do Free, ninguém mais quis parecer cafona a ponto de brigar. Até mesmo uma ideologia combativa como a do vegetarianismo - que, de maneira refinada, acusa a humanidade de ser homicida -, não é tomada como tal, mas preferencialmente como uma filosofia.

Então somos todos filósofos. Ninguém se movimenta mais por ideal nenhum.

O que acho uma pena. Acho de uma pena miserável. Quando surge uma problema que precisa ser combatido, dos terríveis aos mais cândidos, nós que somos filósofos não conseguimos nos mobilizar, não sabemos por onde começar a exigir direitos e cobrar deveres.

E não fazemos nada.

A única coisa que tira nós filófosos de nossas posições é quando precisamos reivindicar aumento de salário. O mundo muda, mas uma coisa continua perene: em questão de dinheiro, só existe uma filosofia: a ideologia do ganhar mais.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Papo de taxista

Curitiba se orgulha de ter sido a primeira em muitas coisas no Brasil. Orgulha de ter sido, por exemplo, a primeira capital com rádio-táxi do país. Passados 35 anos da inauguração deste serviço, a cidade pode se orgulhar agora de ter um dos sistemas de táxis mais defasados também.

Foi junto com a inauguração da Associação Rádio Táxi Faixa Vermelha na capital que a prefeitura concedeu as últimas licenças de táxi. Depois disso, nadica de nada. Curitiba hoje conta com 2.252 carros circulando, ou seja, 775 carros para cada curitibano. Você não leu errado: Curitiba não aumenta sua frota de táxis desde 1976.

Eu, como passageira diária, sinto na pele o mau atendimento. Nos últimos dois anos, que considero os que definitivamente sepultaram o serviço na cidade, desenvolvi algumas estratégias para me precaver da falta de carros. Uma delas foi ter no celular o número de todas as centrais de rádio-táxi. Ligo para uma, não atende. Ligo para outra, não atende. Ligo para a terceira, atendem, mas não têm táxi. Ligo para a quarta e eles mandam um carro que demora 45 minutos. Quando preciso ligar para a quinta, já cheguei em casa andando a pé.

Outra resolução que tomei foi enviar um tweet para a conta do Prefeito, da URBS e da Prefeitura toda a vez que não consigo pegar um táxi. Acho que acabei inundando as contas deles e devo ter sido bloqueada. Daí, desisti da artimanha.

Decidi, como toda civil, acompanhar as discussões políticas sobre a emissão de novas licenças na cidade. Se hoje já está um lixo, imagine como será perto da Copa do Mundo?!

Então soube pela boca de um taxista que a classe estava sugerindo à Prefeitura que trouxesse táxis do interior do estado para atender a demanda durante a Copa. Surtei! Se a Prefeitura acatasse tal disparate, seriam mais 35 anos sem novas licenças na cidade.

Inconformada com a sugestão, resolvi perguntar para todo taxista que conheço numa corrida como resolver o problema do serviço na cidade. Ouvi muito papo e nenhuma solução focada naquele que é a principal razão de ser de um táxi: o passageiro. Percebi que este é um assunto espinhento.

Há taxistas que dizem que o problema é a venda de carro com IPI baixo. Agora devem estar sorrindo, porque o PT resolveu subir o IPI dos importados. Tem taxista que diz que não adianta pôr mais táxi na cidade porque as ruas só ficarão mais cheias: precisa, antes, construir pontilhão, viaduto, trincheira e os escambau para melhorar a mobilidade.

Também conheci a turma dos sem-rádio-táxi que diz que, na hora do rush, os com-rádio-táxi não querem atender chamadas da central porque sabem que se ficarem nos pontos ganharão corridas melhores. E existe a tribo dos conspiracionistas que diz que os políticos e juristas da capital detêm as placas na cidade e fazem lobby para não liberarem mais. Hoje, uma licença de táxi chega a valer 100 mil reais no mercado paralelo, enquanto a URBS cobra 2 mil para realizar a troca de titularidade.

Nestes 15 anos em que morro em Curitiba, nunca ouvi um taxista olhar para mim e me dizer: “De fato, há poucos táxis na cidade.” Nunca!

Sabe o que fiz? Comprei um carro. Taxista faz lobby. Consumidor compra.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Jo Rowling existiu.

VIra e mexe estou lendo o próprio ou sobre Shakespeare. Costumo citar Vinícius para falar destas coisas que me perseguem desde a mais terna adolescência: lê-lo é uma paixão permanente nesta minha vida de constante exilada.

Talvez por isso, quando me senti o mais apartada possível de qualquer vida sã, trabalhando até 12 horas por dia no marketing da extinta Global Telecom, eu decidi colar uma citação de Sonhos de Uma Noite de Verão no MDF da minha baia:

“Somos da matéria de que os sonhos são feitos e nossa breve vida é circundada pelo sono.”

Vai desta minha permanente paixão que criei olhos atentos para ler o nome Shakespeare em qualquer livro num parede forrada nas Fnacs da vida e topei com dois, que comprei imediatamente: 1599, Um Ano na Vida de Shakespeare, de James Shapiro, e O Cânone Ocidental, de Harold Bloom.

Como estou afastada das bancadas acadêmicas desde que saí diplomada bacharel em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas em 1995, fiquei admirada das questões que se punham à leitura de Shakespeare.

Em primeiro lugar, eu nem sabia que duvidavam de sua existência. Que a sua biografia fosse precária, eu sabia. Mas, para mim, Shakespeare é Shakespeare e depois de vê-lo nos longos cílios de Joseph Fiennes em Shakespeare Apaixonado, nunca nem mais me lembrei dos retratos que o pintaram feioso e ele se tornou vivinho da Silva.

Então fiquei chocada ao perceber que duvidavam da sua existência porque não compreendiam como uma Inglaterra elisabetana poderia ter criado um gênio tão atemporal, ou porque o feminismo, ou o marxismo ou o neo-historicismo tentavam soterrá-lo a favor de necessidades mais temporâneas.

Assombrada de que quisessem usurpar-lhe o amor que lhe devoto, gelei ao pensar que meu outro objeto de devoção inglês um dia poderá ser questionado da mesma forma: num futuro distante, talvez daqui 300 ou 400 anos, olharão para trás e suporão que nunca houve uma Jo Rowling.

Não quero aqui comparar talentos. Uno Shakespeare e Jo Rowling apenas porque os amo igualmente. Não estudei Letras: sou linguista. E não fiz carreira na academia, mas no marketing. Uno-os, portanto. É minha licença poética.

Então, para que não haja dúvidas, alardeio ao porvir: Jo Rowling existiu e foi ela mesmo quem escreveu Harry Potter. Não foi seu marido, não foi seu inimigo, não foram seus editores, não foi nem sequer um homem sob pseudônimo: foi ela mesma, mulher, loira, genial, divorciada e casada novamente. Ela existiu e seus milhões de fãs se espalham, como outrora, por todo o globo.

Indeed!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Este assento nao é seu nem por 1 minuto.

Sou super fã confessa das campanhas educativas, porque acho que só pela insistência certas civilidades entram na cabeça do povo.

Agora é a vez dos portadores de necessidades especiais inundarem o You Tube com vídeos mostrando a importância de se respeitar as vagas destinadas a eles nos estacionamentos. Justíssimo, porque, de fato, elas não são nossas, nem por uma fração de minuto.

Cada um tem sua bandeira e outra que eu acho que deveria urgentemente ser empunhada é a do respeito aos idosos nos ônibus. Nos estacionamentos, sempre olhamos ao redor e vemos uma ou duas vagas de idosos vazias. Não conheço a estatística de quantos idosos dirigem, talvez sejam poucos, talvez peguem um maior número de carona que saiam em seus próprios carros.

Já o número de idosos que andam de bondão, isso conheço bem. É grande.

Num destes ônibus normais de Curitiba, de uma vagão apenas, há em média seis assentos destinados aos velhinhos. Num ônibus menor, há normalmente quatro. Nos biarticulados há seis por vagão, em média. Como estes assentos estão sempre cheios, suponho que haja mais idosos que assentos especiais.

Curioso é que, se um idoso entra num estacionamento e percebe que todas as vagas especiais estão ocupadas, ele não hesita em parar seu carro numa vaga normal. Por que será que então, num ônibus, quando todos os assentos de idosos estão ocupados, ele hesita em sentar num outro qualquer?

Mayra boba, a resposta é clara: porque nos outros lugares estão indolentes e insolentes jovens, sentados como se tivessem voltado da guerra, dormindo, ou cochilando, ou fazendo cara de dor, ou hiperfocados em olhar para a frente, absortos em suas próprias ilusões de saúde eterna.

Que velhinho teria coragem de lhes pedir um lugar?

Certa vez, eu contei nove velhinhos num ônibus. Como havia apenas seis assentos especiais, sobravam três em pé e ninguém para lhes oferecer um lugar. Aquilo me deixou indignada mas, como eles, temo pedir uma vaga e ser mal-tratada pelos jovens que, aliás, estão se acostumando a ter um pouco mais de idade do que eu.

A vingança perfeita seria um deles descer no ponto ao lado de uma velhinha queixando-se da dor que ficou no joelho de fazer a viagem em pé e descobrir que aquela velhinha era, na verdade, sua avó, que ele não reconheceu de bate-pronto porque dormia com a cabeça encostada no vidro, fechado em seus óculos escuros, babando um chiclete parado dentro da boca e surdo ao mundo devido a fones de ouvido.

Na próxima vez que você vir um idoso no ônibus, lembre-se de que lhe daria seu lugar se ele fosse seu avô. Ou pense que ele pode ser o avô do futuro amor de sua vida, do seu futuro patrão, ou do futuro médico que irá atendê-lo quando você mesmo estiver se queixando de dor. É sempre fundamental tratar bem um avô.

***

BTW, veja este video sobre a campanha educativa Esta Vaga Não É Sua Nem Por 1 Minuto.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O câmbio automático que eu não tenho.

Ah, as delícias da marcha automática… Primeiramente, a temida rampa: nunca mais ficar em apuros numa subida. Em Curitiba, dirigir e fazer bem uma rampa é questão essencial de sobrevivência no trânsito.

Me lembro da ladeira da Brigadeiro Franco com a Julia Wanderley, nas Mercês, terrível! E aquela ladeira da Senador Xavier da Silva com a Nilo Peçanha, no São Francisco? O cemitério fica ao lado, super agourento para quem não sabe sair com o carro parado numa subida.

Todas estas aflições seriam fichinha para um bravo, raçudo e corajoso câmbio automático.

Depois, os cruzamentos. Um cruzamento banal como a José de Alencar com a Conselheiro Carrão - coisa de pouca monta aquilo de arrancar rápido para cruzar uma via rápida. Que motorista iniciante consegue arrancar um carro com facilidade?! O troço de soltar a embreagem e pisar mais forte no acelerador sem pular pra trás é dificílimo. Dá medo. Mas nada que um destemido e prático câmbio automático não fizesse num pé só!

Finalmente, trânsito lento. Sim, recém habilitados temem velocidade, mas se pelam de medo daquela coisa de andar em primeira, quase pôr segunda, parar e deixar o carro morrer. Um câmbio automático paciente, valente e incansável nunca se apoquentaria com situações como estas.

Um motorista novato precisa aprender a dirigir bem e isto significa usar a tranqueira da embreagem. Você até inventa mil e um caminhos alternativos para não pegar semáforos em subidas, não entrar na Marechal Deodoro na hora do rush; dá sempre um jeito de cruzar preferenciais ou só andar por onde tem sinaleiros de três fases. Mas chega um dia que você se vê no pior dos mundos: no estacionamento de shopping center.

O que seria o ambiente mais confortável e seguro para você dirigir se torna um pesadelo sem fim: rampas em pouca velocidade e uma fila de carros atrás de você querendo que ande mais rápido.

Aquele câmbio automático, que não está no seu carro, tiraria de letra. Só que você tem o seu, um com desenhinhos de retas e números. Lembra que a primeira pode não entrar, então tem que bombear a embreagem. Céus, como fazer isso na subida?! Ai, aquele maldito colou na minha traseira. Será que ele não percebe que peguei a carteira agora?! Cristo, me ajude! E você puxa o freio de mão.

Ah, as delícias do freio de mão…

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No 0800, tecle 9 se for paranormal.

“Detesto prever. No caso da banda larga, quando começou a falhar em casa, desde o início eu sabia que era o modem. Apanho muito configurando email, rede sem fio e o escambau, mas eu tinha certeza de que o problema era o modem.” – explica a professora Mariluce Cerqueira e Costa no caso que demorou quase 60 dias para ser resolvido por sua telefônica.

“Sobre o prazo que a empresa me deu para realizar a troca do produto que comprei com defeito: eu previ que eles não entregariam. Liguei dez vezes no SAC e nas dez vezes ouvi os atendentes garantindo que o prazo seria cumprido. No entanto, eu sentia que eles iriam falhar.” – declara a dona-de-casa Mônica Costenaro e Campos, que até hoje, decorridos mais de 30 dias, aguarda o notebook com defeito ser trocado pela garantia.

Saber, ter certeza, prever, sentir – todas são qualidades de um novo tipo de consumidor: o consumidor paranormal. Às vésperas de 2012, os canais sensitivos dos consumidores se abrem para premonições que as empresas ainda não sabem como tratar.

“É incrível!” – comenta Gilberto Vieira Tenório, diretor do Serviço de Atendimento ao Cliente da Vivaldi Telecom. “É incrível o que estes consumidores são capazes de prever. Eles ligam para nós afirmando que a banda larga não está funcionando por causa de nosso modem. Fazemos testes demoradíssimos com eles, todos apontando que o problema está no roteador sem fio ou na interferência do aparelho de telefone de sua casa. Eles ficam nos ouvindo por horas e dias enquanto afirmamos que o problema não é nosso, e quando finalmente resolvemos trocar o modem, a internet volta a funcionar perfeitamente. Como eles podiam saber?”

Para a consultoria Menezes Costa e Camargo, histórias como as de Mariluce são cada vez mais comuns e não deveriam causar espanto a diretores experientes como é o caso do Sr. G.V.T. A consultoria coleciona depoimentos similares, a exemplo da consumidora Mônica, ouvida por nossa equipe, que sabia que seu notebook Riulet Pacar não seria trocado no prazo estipulado pelo serviço de garantia da Aghapé do Brasil.

Um representante da consultoria diz que as companhias estão perdendo por não atenderem adequadamente estes clientes paranormais. Como eles sabem que o produto que compraram estragou mesmo – e não foi apenas uma dificuldade em usá-lo; como sabem que o serviço de troca não funciona – apesar do sistema da empresa dizer que será trocado; como sabem que devem falar diretamente com o supervisor para resolver seus casos – apesar dos atendentes dizerem que eles mesmos têm autonomia para tal; como estes novos clientes sabem o que vai acontecer, deveriam ser ouvidos com prioridade. “O potencial para melhorar processos internos é inesgotável se as empresas deram ouvidos aos paranormais”, afirma a Menezes C. e C.

Aos leitores desta reportagem, a consultoria deu um conselho radical: “No futuro, só irá sobreviver a empresa que abrir uma linha de comunicação direta com os consumidores paranormais. Eles sabem o que a empresa insiste em dizer que eles não sabem. Então, por que não aproveitar este conhecimento?”

A consultoria completa: “Aquele ‘tecle zero para falar com um de nossos atendentes’ não é mais o paradigma. A nova fronteira da excelência em atendimento é implantar o ‘tecle 9 se for paranormal'.”

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Desculpe por pagar

Eu sou a consumidora das causas impopulares. Minhas recentes brigas são a demanda por mais táxis em Curitiba e a demanda contra reajuste escolar acima da inflação.

A impopularidade de minhas causas é que são coisa de gente, acham, rica. Popular que é popular só demanda aumento de salário-mínimo, demanda cotas em ProUni, demanda esgoto e asfalto no bairro, demanda creche em período integral, demanda prioridade no serviço do SUS, demanda congelamento na tarifa de ônibus.

Então, quando eu reclamo coisas a que a maior parte da população brasileira não tem acesso, me pecham de reacionária, direitista, fascista, nazista e coisas do gênero.

Não sou rica. Rico é Eike Batista, Abílio Diniz, Paulo Lemann, Marcel Telles. Gente assim. Graças às condições iniciais que meus pais me deram e graças sobretudo ao meu trabalho, sou classe média. Antes não fosse, porque classe média neste país sofre de duas doenças, uma mais perniciosa que a outra, que acabarão por matá-la antes de chegar à maturidade.

Sofre, primeiramente, de achar que não deve lutar por seus próprios direitos, porque já tem mais que os pobres. Pensa que, se reivindicar alguma coisa, estará reclamando de barriga-cheia, e que deve suportar tudo já que consegue pagar por escola, plano de saúde, financiamento habitacional e de automóvel.

Classe média tem que pedir desculpas à população por conseguir pagar.

Depois, a classe média detesta reclamar de preço. Detesta pedir desconto. Tem paúra de negociar. Só haverá de negociar se for para não ser chamada de otária, porque daí compartilha um trauma nacional, que passa indelével por todas as classes sociais: brasileiro odeia ser chamado de bobo. Se não for por isso, classe média prefere pagar no crédito a pedir desconto para não parecer que tem menos dinheiro.

No ano passado, quando compartilhei minha indignação junto a outros pais sobre o aumento abusivo da mensalidade da escola de nossos filhos, senti-me ferindo um código de honra, um código absurdo que me fez ter vergonha de não concordar em pagar o que a escola pedia. É como se eu estivesse dizendo a todos que não tenho a mesma condição financeira que eles e, dito isto, imediatamente eles se opuseram a mim porque não queriam se rebaixar a minha condição financeira.

Confuso? Sim. Os sentimentos da classe média são dúbios e é por isso que a última eleição presidencial ficou parecendo luta de classes (mas não era). A classe média, de um lado, apertada em seu orçamento doméstico, achando que reclamar era ser menos rica; e, de outro, a classe que prefiro chamar de “menos média” achando que a “mais média” era insensível à pobreza e miséria do país.

Desculpe-me a franqueza: direita e esquerda no Brasil - tudo é classe média. No mais, há o partido dos que nem sabe que elas existem e o daqueles que determinam qual delas ganhará as eleições. Neste debate, perpretado nos Orkuts, Twitters e Facebooks da vida, não havia ninguém realmente pobre falando por si: eram os “mais média” contra os “menos média”. Algo surreal.

Acredito que todos devemos reclamar. Classe média tem que brigar por aquilo que lhe afeta mais corriqueiramente, por que não? Se não brigar, ficará cada vez mais isolada, não podendo agir nem em causa própria, nem em causa alheia; em suma, não podendo agir pela causa de um Brasil de todos.

***

Se você tem filhos em escola particular, largue mão de seus fantasmas e reclame contra o reajuste escolar acima da inflação. Assine a petição online que criei em:

http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N13771

Esta petição será entregue ao Sindicato das Escolas Particulares do Paraná como forma de mostrar que repudiamos a arbritariedade dos reajustes de valores. Está muito aquém do que civis podem fazer se de fato se organizarem, mas já é um primeiro passo. É imprescindível dar o primeiro passo.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sobre a doce arte de ganhar dinheiro.

Meu bairro se transformou no novo destino gastrômico de Curitiba. Socado entre a rudeza do estádio do Coritiba, a imponência do Museu Oscar Niemeyer, a barulheira do trilho do trem e a fortificação do Presídio do Ahu, o Juvevê era apenas um bairro de passagem. Servia àqueles moradores mais antigos do tempo em que Curitiba pertencia apenas aos curitibanos de nascença.

Foi quando a Prefeitura resolveu que o presídio viraria o novo centro judiciário da cidade, que os vagões da ALL teriam que contornar a cidade, que o estádio sediaria jogos da Copa e que o Centro Cívico se estenderia num calçadão até o Museu. Daí todo mundo começou a olhar diferente para o Juvevê,vendo seu potencial como bairro para se ganhar dinheiro. Aquele povo todo circulando por suas ruas sem saída não teriam outra saída a não ser almoçar, lanchar e baladar por ali mesmo, pois o trânsito para fora de seus limites se tornaria insuportável.

Nada do que a Prefeitura aventou fazer, feito fez-se. Mas os investidores vieram, abrindo bares, restaurantes e cafés.

Fui conhecer um novo membro deste circuito gastronômico semanas atrás. Trata-se de uma casa de cupcakes, aqueles míni bolos super calóricos que são assados em forminhas circulares altas envoltos em papel.

O local estava vazio, denunciando que tinha sifo inaugurado há menos de uma semana. Cheguei por volta das 15 horas, sentei com uma amiga e pedimos um café e um cupcake. Fomos atendidas pela dona, como dá de acontecer quando o estabelecimento ainda precisa se firmar.

Alguém falou em se firmar?

Dali uma hora, não havia mais espaço algum no salão. Todas as mesas estavam ocupadas e meu café vinha frio porque a dona não estava mais dando conta de atender tantas distintas freguesas. Junte Juvevê, café expresso, chocolate e quatro horas da tarde e você tem a receita para se ganhar dinheiro.

Fiquei olhando o movimento e fazendo contas na minha cabeça, quanto a dona estava faturando… Voltamos eu e minha amiga cada uma para seu respectivo negócio. Na volta, passamos em frente a uma outra casa de cupcakes, esta bem menor e para a qual os propretários se davam ao luxo de trabalhar apenas após o meio-dia e nunca aos finais de semana. Nesta hora ela estava aberta, mas tínhamos apostado que fecharia há quase dois anos atrás.

Despedimo-nos só com um aceno de cabeça. Diante das evidências, coube-nos apenas um no comments silencioso e empanturrado de cupcakes.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Redenção do Pipoqueiro

Há momentos na vida em que você resolve encarar de frente sua inabilidade para ganhar dinheiro. É quando pagar a escola dos filhos impede que você viaje para o réveillon na praia e quando o IPVA derruba suas intenções de trocar o computador.

Inscrevi-me num destes seminários punk-rock-hard-core-heavy-metal de desenvolvimento de habilidades empreendedoras, destes que o arrasam primeiro para o reerguerem depois. Estava pronta para fazer uma reengenharia nos meus processos mentais, aprender estabelecer metas e cumpri-las. Estava decidida a tomar as rédeas de meu futuro promissor endinheirado.

O seminário foi pauleira mesmo. A gente não dormia direito, não comia direito, mal tinha tempo para fazer xixi. De cara, aprendi que empreendedor, para ser rico, tem mesmo que passar fome, frio e sono desde a faculdade e durante a minha fiz exatamente o contrário de tudo isso: frequentava festas, faltava às aulas matinais para dormir até mais tarde e cedo abandonei o bandejão para comer melhor e mais caro na cantina. Notei quanto dinheiro vinha gastando com meu conforto desde então.

Passados seis dias de penosas provas, obtive o certificado do curso, ganhei dois dos três prêmios distribuídos aos participantes e me considerei pronta para remodelar meu negócio de acordo com metas assaz estimulantes.

Foi quando me enviaram um “you tube” da Pipoca do Valdir. No video, este microempreendedor do ramo alimentício mostrava como tornava seu carrinho de pipocas o melhor de Curitiba. Todas as lições pelas quais paguei uma fortuna para aprender no seminário estavam lá, postas em prática, e com louvor:

- O aprimoramento constante da qualidade do produto: Valdir tinha resolvido fritar o milho em óleo de girassol para agregar menos colesterol ao seu cliente;

- O fator “a mais” no atendimento a clientes: Valdir oferecia aos clientes álcool gel antes de lhes entregar a pipoca e a entregava junto com um kit higiene contendo guardanapo, palito de dente embalado e bala de hortelã;

- O foco no core business e na meta: Valdir vendia apenas pipoca no seu carrinho e nada mais; em compensação, queria ser a melhor pipoca da cidade;

- O cuidado com a marca: Valdir investia forte na limpeza e higiene de seu carrinho, que brilhava de tão limpo, e ainda tinha um jaleco branco impecável para cada dia da semana.

Diante de tão assintosa prova de que novamente eu tinha gastado dinheiro para aprender o que muitos já sabiam, tive que conferir in loco aquela proeza do gênio empreendedor. Fui até a Praça Tiradentes comer a pipoca do Valdir. O que esperava? Secretamente, que tudo aquilo mostrado no You Tube houvesse sido maquiado, que a propaganda fosse enganosa.

Mas a prova dos nove deu vitória ao Valdir. Sua barraca era mesmo impecável, o kit higiene realmente foi entregue, o álcool gel de fato estava à disposição e sua ajudante estava usando o jaleco da terça e não da segunda-feira.

Mas um empreendedor, por mais bem preparado que esteja, nunca estará inteiramente preparado para uma cliente vegetariana ecochata como eu. Eu queria comer pipoca salgada, mas ela estava salpicada de bacon. “Arrá!”, pensei. Como Valdir não estava trabalhando naquele dia, virei para sua ajudante e disse: “Olha, eu tenho uma sugestão a fazer: que vocês não coloquem bacon na pipoca, senão os vegetarianos não podem comer.” A ajudante apenas me olhou e disse: “A pipoca doce você pode.”

Comprei a pipoca doce. Não queria; queria a salgada. Mas eu tinha que comprar alguma para testar o atendimento pós-venda. Saí de lá contrafeita, porque não comi a salgada, porém satisfeita, porque o Valdir não era, afinal, visionário. O mercado vegetariano cresce e ninguém mais pode deixar de atendê-lo.

Passados 365 dias, topei com o carrinho do Valdir de novo. Eu estava com fome, não tinha almoçado e resolvi despejar nele meu desgosto por não encontrar nada vegetariano para comer naquele centro da cidade. A visão do público vegetariano ainda está muito distante do radar dos donos de padarias, lancherias e botecarias.

Falei diretamente ao Valdir, notando o capricho irretocável de seu carrinho e uniforme, como naquela primeira vez: “Ah, Valdir, eu queria comer a pipoca salgada, mas não como bacon.” Mal eu tinha terminado a frase e ele abriu um sorriso: “Mas eu faço na agora para você! Demora só um minuto. Tem muita gente que não come bacon, é só falar que faço na hora mesmo!”

Saí da barraca com minha pipoca salgada , meu kit higiene contendo bala de hortelã e guardanapo e agora, ao invés de palito de dente, fio dental embaladinho. Fiquei arrasada: depois de um ano, eu ainda não tinha ideia de metas para minha vida e o Valdir ali estava redimido, entregando-me pipoca quentinha quando tudo o que eu queria era apenas a pipoca sem bacon.

***

Assista aqui ao you tube da Pipoca do Valdir. Sou fã!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Regojizos busísticos

Dizem que brasileiro lê pouco. Dizem que francês lê muito. Retrato fiel desta constatação é que, nos metrôs parisienses, apertadas entre sobretudos e bolsas, surgem dezenas de mãos segurando livros cuja leitura se inicia e se completa exclusivamente de uma estação a outra.

No Brasil, tal cena já é bem mais rara. Primeiramente, porque faltariam metrôs para que ela se repetisse fidedignamente. Segundo, porque brasileiro carrega, quando vai trabalhar, um kit-trânsito que não dá espaço para nenhum item literário.

Sabendo a que horas sai de casa, mas nunca sabendo quando chega, ao passageiro destes bondões brasílicos resta se precaver contra atrasos causados por enchentes, alagamentos, quedas de barreira, aberturas de crateras e toda sorte de infortúnios causados por intempéries. Isso quando não precisa se preparar para eventuais arrastões, sequestros de ônibus, barreiras incendiárias, bloqueios de túneis e trincheiras.

Na sacola do passageiro-vale-transporte é mais importante colocar escova de dente, pente para cabelo, desodorante, sabonete, muda de roupa, casaco de frio, guarda-chuva, água e lanchinho, remédio para dor de cabeça, lenços de papel, papel higiênico, lixa de unha, absorvente íntimo, lenço umedecido que qualquer livro. Vai assim que, se sobrar algum espaço na bolsa, o brasileiro prefere preenchê-lo com o carregador de celular. Pior que ficar sem poder chegar em casa é ficar sem poder dar notícias.

Logo, dizer que francês lê tanto que lê até no metrô é desconhecer o aperto da bolsa de nossos leitores quando andam de busu.

Mas há exceções regojizantes.

Dia destes, eu tinha pegado um ônibus para ir a minha livraria preferida em Curitiba, a Mahatma. Saí de lá com três volumes, levados a duras penas dentro de uma sacola que segurava no outro braço, já que o direito fica sempre encarregado de minha bolsa e seus inúmeros apetrechos.

Eu queria começar a ler um dos livros que tinha comprado ali mesmo no ponto, em tal ansiedade estava para saber o destino da loja que, na Paris atual, herdava o nome da mítica Shakespeare & Co. do entreguerras. Figuras literárias como James Joyce, Sylvia Beach, Hemingway e Gertrude Stein ecoavam em meus pensamentos e eu queria estar imersa num mundo em que todos lessem e discutissem literatura com o mesmo ardor com que discutem sobre suas doenças e remédios.

Mas a imagem das pessoas que esperavam no ponto comigo era o contrário de uma roda literária: pessoas com as bochechas vermelhas, esbaforindo sob o sol da tarde, carregando sacolinhas de supermercado pesadas e cheias de tudo, apertadas em calças jeans esmaecidas, vestindo uma camiseta suada por dentro de cuja gola passavam os fios do fone de ouvido do celular. Pessoas preocupadas com o crediário, com a fila do SUS, com o tratamento dos dentes do filho.

Foi quando passei pela catraca cumprimentando o cobrador e notei que ele lia. Sim, ele lia. Olhou-me rapidamente, apenas verificando como eu pagaria a passagem, e voltou seus olhos para o livro. Nas outras paradas, ele agia sempre com a mesma presteza em atender o passageiro que entrava para voltar imediatamente à leitura de seu livro.

Fiquei embevecida. Eu nunca tinha visto um cobrador lendo. Aquilo era um sinal de que eu, amante de livros, não estava afinal sozinha nos busus da vida. Quase saquei o livro da minha sacola e lhe dei, para que ele soubesse que houve em Paris pessoas que tornavam suas vidas mais belas por meio da literatura. Entretanto, contive-me: ele poderia estar lendo algo para prestar concurso e isto cairia como um balde de água fria.

Na bolsa do brasileiro sempre haverá espaço para algo que lhe acene com um trabalho mais bem remunerado.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Aflições busísticas

No linguajar dos pobres coitados que não dirigem, há vários apelidos carinhosos para ônibus: “bondão”, que acham popular, mas que eu considero culto, porque mostra que o sujeito sabe que seu antecessor na história da cidade eram os bondinhos elétricos; “busu”, outra alcunha cultíssima, que remete ao anglo-saxônico bus; e aqueles que são locais, como nestas vias de Curitiba, onde nunca pegamos simplesmente um ônibus, mas sim o “vermelhão”, “o verdão”, o “ligeirinho”, o “ligeirão” e, mais recentemente, o “Avatar”, conhecido à boca miúda como “Viagrão”, dada sua cor azul e ao fato dele levar todo homem honesto rapidamente ao trabalho.

Dos apelidos que mais gosto, consta o busu. Mas não o uso assim, em qualquer circunstância. Em dias normais, quando a espera por um ônibus está nos atrasos regulamentares, ou quando ele está bem cheio, ou quando todas as janelas estão fechadas e o povo tossindo, pego simplesmente um ônibus para vir para casa.

Pegar um busu é só para quando o troço sai realmente do convencional. Como um dia destes:

Saca assim uma praça bem entupida de gente, trânsito, barraquinha de pipoca e transeuntes no centrão-nervoso? Esta praça aqui na minha cidade se chama Tiradentes. Pois chovia, e eu estava andando pela Tiradentes em direção ao ponto do meu ônibus. Guarda-chuva na mão, bolsa a tiracolo na outra e a sapatilha encharcada fazendo aquele barulhinho xóqui-xóqui quando eu pisava. Olhei de longe e não acreditei na minha sorte: meu ônibus já estava lá, prontinho, de porta aberta, esperando para eu entrar.

Pisei no primeiro degrau fechando desajeitadamente o guarda-chuva. Cumprimentei o motorista – que sou gentil, oras! –, saquei do cartão-transporte, passei pela catraca e vi que o fundo estava vazio. Puxa, que sorte mesmo! Pegar ônibus com o fundo vazio em dia de chuva não é para qualquer um, não, meu irmão!

Passei por um, passei por outro, ultrapassei os limites da primeira porta de saída e… estanquei: no corredor, impedindo completamente a passagem da mais magrela das pessoas, havia dois distintos trabalhadores segurando por alças dois imensos volumes bem dispostos no chão: um deles, pelo que calculei, de uns 50cm por 40cm por 100cm. O outro volume mais baixinho, porém mais largo. Ou seja: alguns vários milímetros cúbicos assintosamente estacionados no corredor. Estava bem explicado, visilmente demonstrado porque o fundo do ônibus estava vazio.

Mas eu ainda não tinha perdido a esperança de me acomodar mais folgada naquele trajeto até minha casa. Dei meia-voltinha e fui buscar espaço nos degraus da escada da primeira porta. Não é lá muito seguro, mas era longe o suficiente das roupas molhadas, das janelas enlameadas de hálito quente. É neste momento do relato que meu ônibus conquistou o mérito de ser chamado “busu”.

Enfiada nos degraus da porta estava uma menina segurando inacreditável meia-dúzia de bexigas. Cheias!, tá me entendendo? Cheiazinhas-da-silva. Desisti de fazer qualquer movimento. Fiquei ali mesmo, imóvel, a contragosto, segurando arduamente um cano gelado muito acima de mim até ficar óbvio à moça festeira que ela teria que descer com seus balões para que eu saísse do busu.

Cheguei em casa estupefata: que se queira fazer compras na cidade e carregá-las no busu, tudo bem. Que se queira economizar o táxi em dia de chuva, melhor ainda. Mas que se queira levar bexigas cheias para casa de busu, ah, isto era o fim do mundo! Por pouco não fomos todos para a casa dela também, animar a festa fazendo um cachezinho como palhaços.