domingo, 17 de junho de 2012

Menos, Vogue; quer dizer, mais.

Logo depois de eu ter escrito sobre a ditadura da magreza, topo com um aviso do grupo que publica a revista Vogue pelo mundo afora: a de que as editoras-chefes das 19 edições internacionais da revista assinaram um pacto para valorizar a imagem de um padrão corporal possível e saudável em suas páginas de moda. O padrão corporal está tão magro – o chamado size zero – que apenas meninas (magras) na puberdade ou adolescência podem ser usadas nas fotos.

A carta de intenções, intitulada The Health Initiative (publicada na edição da Vogue Brasil de junho de 2012) é tão autocentrada que preciso reproduzi-la aqui e depois comento.

“1. Não trabalharemos conscientemente com modelos com menos de 16 anos ou que pareçam ter algum tipo de distúrbio alimentar. Escolheremos modelos que, em nossa opinião, sejam saudáveis e ajudem a promover uma imagem corporal sã.

2. Pediremos aos bookers e às agências que não nos indiquem modelos com menos de 16 anos e também faremos lobby junto aos diretores de casting para que verifiquem identidades antes de marcar um ensaio, desfile ou campanha.

3. Ajudaremos a estruturar um programa em que as modelos mais maduras possam aconselhar e guiar as mais jovens e nos empenharemos em aumentar a conscientização de toda a indústria da moda através da educação, como tem sido a base fundamental do The Health Iniative do CFDA (Counsil of Fashion Designers of America)

4. Nos comprometeremos a criar boas condições de trabalho para as modelos, com alimentação saudável, respeito à privacidade e horários justos.

5. Incentivaremos os estilistas a pensarem nas consequências de produzir peças extremamente pequenas, o que acaba por limitar a gama de mulheres que podem ser fotografadas nelas, estimulando o uso de modelos muito magras.

6. Seremos embaixadoras da imagem corporal saudável, na revista e fora dela.”

E aí, qual foi sua reação? A minha foi de indignação. Embora eu seja partidária de que o ótimo é inimigo do bom, às vezes é melhor não tentar melhorar, pois piora. Comento:

Item 1: o que é exatamente “não trabalharemos conscientemente”? Quer dizer que as meninas falsificam a identidade para poder trabalhar na indústria da moda? Se você olhar uma menina e achar que ela está mentindo sobre sua idade e sobre seu documento de identidade, sua consciência vai agir como? “Ah, deixa passar” ou vai dizer “melhor não”? E se uma menina vier com emancipação legal, aí tudo bem dela ser fotografada com 16 anos? Outra coisa: como se define distúrbio alimentar? Será preciso flagrá-la vomitando no banheiro ou será preciso fuçar em sua bolsa pra saber se ela toma drogas pra inibir/suprimir o apetite? Como a Vogue conciliará estas resoluções com a de manter a privacidade das meninas (item 4)? E, finalmente, o que é a opinião da Vogue sobre ser saudável? Uma revista que publica, na mesma edição, o The Health Initiative e as matérias “Mulheres magras - As duas dietas radicais de Alexandra Farah” e “Corte radical - Daniela Falcão conta por que optou pela cirurgia de redução do estômago” pensa exatamente o quê sobre saúde?

Item 2: “pedir que não nos indiquem” é uma coisa: “exigir que todas as modelos tenham mais de 16 anos” me parece um coisa bem diferente. Por que não se comprometer com a proposta? Por que tanto receio de afirmar a posição perante seus colegas? Parece que a culpa de escolher modelos macérrimas não é da revista, mas das agências. Quem manda na revista, afinal? E é pra mudar ou é só pra posar de bonito?

Item 5: Acho que é o item mais cínico de todos. Se a Vogue manda no negócio, basta não escolher o estilista que faz roupas pequenas, ponto! Se o cara acha que a Vogue é importante, ele que trate de fazer roupas maiores. Ou a Vogue se compromete ou é melhor dizer de uma vez que, ora, “eu jamais vou sacrificar um editorial de moda porque a roupa é pequena demais!”

Se a Vogue quer realmente se comprometer em não acabar com a autoestima das mulheres, se ela acredita que realmente vem contribuindo para que as mulheres persigam a qualquer custo uma aparência irreal, esta deveria ser a carta de intenções:

1. Não usaremos photoshop ou programa similar para retocar corpo e rosto de modelos.

2. Trabalharemos apenas com modelos que tenham uma aparência de peso saudável. Como o critério “aparência” é subjetivo e como não é competência jornalística definir o quanto uma modelo é saudável ou não, mas sim de profissionais de saúde, adotaremos o critério de Índice de Massa Corporal (IMC) como parâmetro para determinação de um peso saudável. Sendo assim, trabalharemos com modelos que tenham, no momento da foto, IMC considerado normal.

3. Não trabalharemos com modelos com menos de 16 anos de idade, emancipadas legalmente ou não.

Pronto. Se a Vogue se comprometesse com isso, nada daquela blá-blá-blá subjetivo seria necessário. A reinvindicação é: menos cinismo, mais realidade; menos subjetividade, mais objetividade; menos preconceito, mais empatia; menos magreza, mais corpos comuns; menos saúde perfeita, mais saúde possível.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Tolerância magra.

Não acho que vivamos uma ditadura da beleza. Afinal, feios não são caçados, nem trancafiados. Leio regularmente revistas de moda e sempre fico pasma de ver um monte de modelo feia posando de bonita. Também fico boba de ver editoras de moda bem feinhas bancando as gostosas. Não são delírios do photoshop, porque estas que vejo não ficariam nem mais um pouco menos feias com todo o photoshop disponível.

Acontece que são magras.

A ditadura que vivemos é a da magreza. Gordos, obesos, acimas do peso, cheinhos, fofinhos – estes, sim, estes estão sendo sumariamente perseguidos. Não existe tolerância com pessoas não-magras: elas devem emagrecer ou desaparecer. Nem saudáveis mais se acredita que possam ser: não-magros não devem existir.

Numa destas revistas, li reportagem sobre uma editora de moda não-magra que emagreceu. Fiquei triste. Quero dizer: fiquei alegre por ela, ela queria e conseguiu; mas fiquei triste, pois perdemos uma rebelde. Vi que elogiaram uma vencedora do American Idol porque ela secou. Fiquei feliz por ela, queriam e conseguiram; mas fiquei desapontada, foi mais uma baixa.

Então vem aquele comercial de sabonete elogiando mulheres reais, e nenhuma delas é: todas são magras, ou são não-magras sem barriga. Fico melancólica, porque todas se encaixam.

Aquele ditado que não existe mulher feia, o que existe é mulher sem dinheiro, conhece? Ele está incompleto: uma mulher gorda com dinheiro, jamais a acharão bonita, nem com toda a arrumação do mundo.

Olhe a sua volta e veja o que a mídia de moda faz: ela chama qualquer imbecil de interessante apenas porque a pessoa é magra. Se desenhar roupas ridículas, ela é um stylist interessante. Se desenhar móveis ridículos, ela é um designer interessante. Se  não fizer nada na vida e tiver dinheiro, é uma it-person interessante. Se for não-magra, poderá ser um gênio, nem aparecerá na revista.

Apresentadores de TV também devem ser magros. Suspiro profundamente com o que fizeram àquela dupla e lamento mais o que a dupla fez à já tão combalida auto-estima das pessoas: junto com aqueles que compartilham que médicos são deuses, decretaram que não há estado não-magro saudável e que todos que não emagrecerem vão morrer em breve.

A loucura da magreza é tanta que site de seguro saúde e laboratório de análises clínicas traz calculadora de índice de massa corporal na home page. Parece que um IMC baixo vai nos livrar dos efeitos colaterais de toda esta porcaria que a indústria farmacêutica joga no mercado com anuência da ANVISA e autoridades médicas. Parece que perder peso é a única medicina preventiva, serve mais até que ser feliz. Se é que é possível alguém se achar feliz estando não-magro.

A única moralidade atual é ser magro. É por isso que aceitamos votar em políticos não-magros: porque é fato consumado que a política é o reino da imoralidade. Quando o brasileiro compactuar com a seriedade e a honestidade, nunca mais teremos presidentes cheinhos, pode escrever.

Certa vez eu li a notícia de um curso: “A verdadeira dieta da longevidade é a que faz restrições de calorias.” Me pareceu que minha teoria estivesse errada: não é a magreza nosso algoz. A magreza é apenas o laranja: nossa peçonha é a longevidade. Ninguém mais tem o direito de querer viver pouco. Com pouco, ainda vá lá, admite-se; mas muito.

Escrito por Mayra Corrêa e Castro, uma não-magra manequim 42.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Enfim, um sim.

Miniconto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

Sufoquei ante a imperiosa necessidade de discursar em público, meu maior medo. Um tapa nas costas e fi-lo pois sem um sim não há matrimônio.

 

Foi interessante participar deste concurso de minicontos com 140 caracteres. Para escrever o miniconto, parti da ideia original abaixo, que já era, por si, bastante enxuta. Veja o texto inicial que acabou sendo reduzido aos 140 caracteres:

“Sempre que me pediam para falar em público, era um tormento. Ficava vermelho, rouco, gago e engasgado, até ficar afônico. Mas naquele dia eu deveria discursar. Por mais que tivesse tentado, não havia nenhum modo de fugir àquele discurso, o mais importante de minha vida e que a definiria irremediavelmente a partir dali. Não pude convencer ninguém de que seria desnecessário discursar. Eu cria, com toda a razão, que minha presença já seria suficiente para selar meu comprometimento com a causa daquele discurso. “Em vão”, argumentaram: “Esqueça sua campanha, Horácio. Ou você fala o ‘sim’, ou o padre não sela seu matrimônio.” Convencido da absoluta necessidade de dizê-lo, fi-lo: mas com tanto nervosismo que engoli cada uma das palavras. No fim, creio que fui entendido por todos, posto que ganhei um beijo da noiva.”

 

Miniconto participante da antologia Geração em 140 Caracteres, ebook editado pela Geração Editorial.

O IPO de Adailê.

Conto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

Não que Adailê não amasse o marido. Vingar-se era um apelo de gênero. Viveram falta de dinheiro, filhos, meses sem sexo que fazem um casal desistir. Ela não desistiu nem no sabático para cuidar dos filhos. Quando conto isto, eles já são adultos. Como esperado, o sabático de Adailê se estendeu para o “dona de casa”.

O marido ascendia. De empregado a sócio; de um carro 1.0 para 3.0, moto, barco, adega. Tudo que Adailê conseguiu era não ter ficado burra e feia. Ela não queria ficar para trás.

Adailê tinha bons genes. Após vinte anos, não precisava muito para continuar bela. Para a burrice, desenvolveu estratégias. Nelas concentrava seus esforços. Mesmo sem trabalhar, mantinha hábitos executivos: lia revistas de economia, vestia-se bem. Ela dizia que um homem de negócios, como seu marido, só possuía interesse naquilo que desse lucro. Se ele olhasse para ela e visse ali um centro de custo dispendioso, a primeira coisa seria cortá-lo. Dando inveja a gurus, Adailê mantinha seu centro enxuto e permanecia em forma só com mesada.

Uma engenharia difícil: para economizar, Adailê fazia suas unhas e cabelo; ficava com roupas de caridade; usava academia do parque; lia revistas emprestadas. Eu mesma lhe dei minha senha para a leitura de um jornal.

Era um esforço sem reconhecimento. Eu teria explodido. Ela explodiu também, só que fez antes o planejamento estratégico. Começou assim: ela queria ler uma revista que o marido assinava. Sempre preocupada com seu fluxo de caixa, pediu ao marido que trouxesse a revista do escritório. Ele nunca trazia. Isto bastou para minar o romantismo dela: quis ultrapassar o marido.

Começou aplicar suas economias e chegou a um patrimônio no valor que o marido havia despendido em bens móveis, imóveis e gastronômicos. O passo conclusivo seria pedir o divórcio. Adailê me explicou que IPOs bem sucedidos são engendrados no drama. Ela aguardou o seu.

Num domingo, o marido tinha saído com clientes. Ela pediu as revistas que ficavam no barco. Ele falou: “Você me enche com estas revistas!”. Enquanto ouvia o ronco da moto, Adailê foi ao micro e imprimiu uma página. Depois foi à garagem. De seu carro tirou dez caixas e as colocou no porta-malas do carro do marido. À noite, ele chegou exultante, mas ela estava séria.

- Algo errado?

- Sim. Trouxe as revistas?

O marido achou absurdo que ela só pensasse naquelas malditas revistas. Ironizou:

- TPM?

Adailê percebeu a oportunidade e resolveu lançar seu IPO. Pediu o divórcio e entregou o papel. Eram as condições. Surgiu com uma mala e desceu à garagem. Ele não sabia se lia o papel ou a seguia. Quando se resolveu, correu e a viu ir.

O ex-marido percebeu que o divórcio o arruinaria. Olhou para o carro e notou as caixas. Abrindo o porta-malas, rasgou-as sem acreditar no conteúdo: coleções de revistas de negócios. Encontrou um bilhete: “Engula ou enfie.” Junto dele havia o cartão de visitas de uma consultoria. Ele leu: “Para futuras ex-donas de casas. Adailê Marquezine, CEO”.

 

Este conto também foi enviado para o 4º Concurso de Contos das Livrarias Curitiba, edição 2012. Teve a limitação de 3 mil caracteres. Não foi selecionado.

A mãe que emprestava sonhos.

Conto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

O filho vinha acordando com pesadelos. A mãe acudia:

- Foi pesadelo. Dorme.

O menino passou a acordar todas as noites. Ela teve uma ideia: ensiná-lo como não ter pesadelo.

- Junte os dedos assim. - O filho imitava. - Agora repita: "Não vou ter pesadelo”.

Da primeira vez, deu certo. O filho dormiu a noite toda. Deu certo na segunda vez, até que ele falou:

- Mãe, não tá dando certo. Continuo sonhando com lobisomem.

A mãe concluiu que tinha errado a técnica. Corrigindo, garantiu:

- Agora vai funcionar! - Juntou ela mesma os dedos polegar, indicador e médio, colocou a ponta dos três no centro da testa e disse: - Mamãe vai passar bons sonhos para o Luca. - Era Luca o nome de seu rebento. Encostando os dedos no centro na testa do filho, finalizou: - Tic, tic, tic.

O filho dormiu tranquilo. O mesmo aconteceu por noites seguidas. Aquilo tinha virado um hábito. Se a mãe esquecesse o “tic, tic”, o filho levantava vindo cobrá-la.

Certo dia, levando a ponta dos seus dedos à testa do filho, ele fez a pergunta:

- Mãe, você tá com este machucado na testa de tanto dar sonhos pra mim?

A mãe riu. Pareceu que seu filho a amava muito por se sentir tão preocupado.

- Não, Luca, este machucado foi mamãe que cutucou. - E foi se deitar rindo da imaginação das crianças.

Naquela noite, fazia muito calor. Ela dormiu mal, realmente mal. E teve pesadelos.

Na noite seguinte, o filho notou que o machucado da mãe ainda estava lá:

- Não sarou?

- Não, filho. Às vezes demora. - Nesta noite, ela teve novos pesadelos.

Ao cabo de um mês, como o filho a lembrasse do machucado que não sarava, ela ficou preocupada. Não dormia mais direito e o machucado tinha um aspecto grotesco. Para disfarçá-lo, havia deixado a franja crescer.

Luca percebia que sua mãe estava triste e quando vinha lhe dar boa noite, ela sempre brigava: - Preciso dormir!

O filho dirigia um olhar temeroso para a testa da mãe. Então resolveu: com toda a braveza de um menino que agora estava no 1º ano do ensino fundamental, disse à mãe:

- Hoje não precisa fazer “tic, tic”. - A mãe olhou desconfiada.

- Tem certeza? Depois não vai me acordar? - O moleque fez que sim.

Tereza dormiu; dormiu longas horas. Até sonhou que dormia.

O dia raiou. Tereza levantou da cama sentindo-se muito bem. Viu o filho:

- Bom dia! Dormiu bem?

- Não, mãe. Tive pesadelo. - Aflita, tomou Luca no colo.

- É por que não fiz o “tic, tic”? - Tereza estava cheia de culpa. Soltando-se dos braços da mãe, Luca respondeu:

- Eu que quis, mãe. Matei o lobisomem.

Indo se arrumar, Tereza tomou a escova para alisar a franja. Era uma hora difícil, pois mesmo um leve toque na ferida doía. Mas ela tinha feito a escova sem dor alguma. Por um breve momento, Tereza pensou se seria possível que...

Na escola, Luca preparava um cartão para o Dia das Mães. Ele tinha desenhado sua mãe e foi mostrar à professora.

- Luca - inquiriu a professora -, você desenhou sua mãe sem cabelo? - Ele levantou as sobrancelhas:

- Não é cabelo. É franja. Ela não tem mais franja.

 

Este conto foi enviado para o 4º Concurso de Contos das Livrarias Curitiba, edição 2012. Teve a limitação de 3 mil caracteres. Não foi selecionado.