sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Por preferir Balzac

Estávamos no Banco da França. Eu não era ninguém, ele era Balzac. Não tinha sido um acaso. Quão poucas coisas podemos reputar ao fortuito! Literatura é ficção científica: eu havia retrocedido anos nos séculos, ele avançado outros tantos, e, portanto, estávamos juntos ante aquela instituição.

- Vim saldar sua dívida, Balzac!, falei.

- Mas por quê?, ele perguntou. Após tantos séculos, será que tinha perdido, afinal, o despudor de emprestar dinheiro? Respondi-lhe que o fazia porque ele precisava ser quem gostaria de ter sido, um homem rico.

Nesse momento, notei um sujeito mais baixo entrando pela porta ao nosso lado. Correu para dentro. Segui-o com o olhar. Reconheci-o antes que fosse cumprimentado pelo gerente. Era Flaubert, o pai. Intuí que tinha vindo sacar de sua poupança, de letras que rendiam tantos juros. Tomei o cotovelo de Balzac, apontando-lhe a porta:

- Entremos, e o dirigi para dentro.

Foi penoso pagar a dívida e ver meu herói fenecer ao meu lado. Eu queria salvá-lo, mas aquilo lhe caía como derrota. Não percebi inicialmente que ele ficava olhando para o outro escritor, o que dissera “que homem teria sido Balzac se soubesse escrever”.

Disfarçadamente, anotei um bilhete e pedi ao gerente que o levasse a Flaubert. Quitada toda a dívida de Balzac, saí com ele do banco. Desejei-lhe boa sorte. Queria um abraço, mas não me pareceu adequado. Ele estava cansado, ou conformado. Não iria contrair mais dívida alguma.

E o bilhete? Quando Flaubert o abrisse, naquele momento ou séculos depois, veria: “A leitora sou eu.”

 

Nota para esclarecimento: Talvez não seja de seu conhecimento que, além de autor de grandes romances, Balzac foi autor de numerosas dívidas. Muitos de seus livros foram escritos com o intuito de transformá-lo num homem rico e há cartas onde ele escreveu que queria empreender ao menos uma vez corretamente para poder deixar de escrever. Balzac foi o primeiro romancista que trouxe a questão do dinheiro na sociedade francesa em transição de um modelo monarquista e nobre, para um modelo republicano e burguês. A consciência que tinha da importância e iniquidade do dinheiro foi que tornou seus romances tão famosos e sua vida tão arduamente construída. Balzac foi um operário das letras – talvez o primeiro. Enquanto isso, Flaubert, uma geração posterior, amealhava o reconhecimento público, em vida, que Balzac almejou. A declaração de Flaubert sobre Balzac, se não for verdadeira, tem chance de sê-lo, pois quem a cita é Umberto Eco, na página 175 de Não Contem com o Fim do Livro. E o bilhete entregue a Flaubert, nessa crônica, remete à famosa declaração do autor sobre sua obra máxima: Mme. Bovary c´est moi, ou seja, Madame Bovary sou eu. Flaubert é considerado o pai da modernização do romance.

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Banho de gato

– Por que demorou tanto no banho?
– Tava tão gostosinho...
– Já não falei pra não demorar?
– ... falou.
– Então por que demorou?
– Eu não te ouvi chamando.
– Mas não tenho que chamar, você que tem que sair.
– Mas como é que vou saber se você não chamar?
– ...
– Viu, nem você sabe.
– Deixe eu ver se lavou o cabelo direito.
– Tá bom?
– Vem perto, deixa eu ver. Hum. Tá.
– Quer ver atrás da orelhinha também?
– Quero. Vira. Hum. Tá.
– Viu?
– Vi.
– E agora, posso ver TV?
– Cê lavou o bumbum?
– Eu já tinha limpado com papel.
– Cê entrou no banho e não lavou a bunda?!
– Você diz no lado ou lá no fundinho?
– Cê não tinha feito cocô antes do banho?
– Tinha.
– E não lavou direito?
– Esqueci... Tem problema?
– Tem. Já pro banho de novo.
– Mãe, pode deixar que agora não esqueço de passar sabonete no corpo.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Vovó Dilma

Senhora Dilma,

a professora pediu que agente escrevesse uma cartinha falando dos problemas do Brasil. Ela disse que as melhores cartinhas ia mandar para você.

Como eu gosto muito do Brasil, só não gosto da pobreza, dos bandidos e de quando o Brasil perdeu na Olimpíada eu escolhi falar de um problema que a minha mãe fala.

Ela vive dizendo que os avós não são mais como antigamente. Acho que ela reclama quando a vovó não pode me buscar na escola porque precisa trabalhar.

A vovó tem 60 anos. A vovó já devia estar aposentada a mamãe diz, mas ainda está trabalhando. Quando agente está de férias, a vovó também não pode ficar com agente, porque daí a vovó fala pra mim que ela agora é que precisa de férias que está muito cansada.

O papai também acha que nem a mamãe e diz para mim que a vovó trabalha tanto porque a aposentadoria que o governo dá pra ela é uma mixaria.

Como a mamãe falou do governo, eu aí pensei vou contar pra senhora.

A professora disse que você também tem netinho. Ela me disse que você é ainda mais velha que minha vó.

Daí eu queria perguntar se você também não pode buscar o netinho de você na escola porque o governo está te dando muito pouco dinheiro e você teve que ser presidente para ganhar mais?

Um abraço, Felipe Nunes (9 anos).

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Autobiografia numerológica

Sou dada a numerologias. Aos que também têm a mania, escrevo logo meu nome. O de batismo: Mayra Corrêa e Castro.

Sim, eu sei, há um Y. Um Y, como Pitágoras advertiu, dificulta um pouco as coisas. Olhe o formato dele, um caminho bifurcado. Querem dizer que o Y faz a pessoa mudar muito de caminho até achar o seu. Veja por onde ele me levou até agora, idade de 39:

– Nasci paulistana, cresci joseense até os 18, estudei-me campineira dos 19 aos 22, vivo curitibana desde os 23.

– Formei-me linguista por 4 anos, trabalhei marketeira durante 10, subsisti professora de yoga por 9, ensino aromaterapia há 5, agora quero escrever.

– Aos 13 conheci meu atual marido. Temos dois filhos paranaenses, um nascido no Norte, outro mais pro Sul.

– Tomei leite materno, comi carne de vaca; hoje não quero mais nada da vaca, nem do boi nem dos bezerros: vegetariana há 12 anos.

– Estudei francês aos 11, aprendi alemão aos 17, fiquei no inglês até os 27. Alemão já não sei, quero aprender o espanhol.

Astrologia estudei em adolescente. Num ano de energia 7, o número do stress, fui aprofundar a numerologia e tive meu primeiro espanto: eu não era uma alma que vibrava a energia 8. O 8 do business, da autossuficiência, do mata a cobra e mostra o pau. Todo 8 tem orgulho de ser quem é. Eu tinha feito as contas errado.

Minha alma, em realidade, vibra dois números (praga do Y?), ora a energia do 33, ora do 6. O número mestre 33, idade de Cristo, mas que já foram logo avisando, uma energia muito sublime pra reencarnar nestes fins de era. (Do 33 talvez tenha herdado a facilidade de escrever.) Já a energia 6, essa é perfeitamente assimilável: meiguinha, amiguinha, queridinha. E insegura.

O insegura é que foi um choque pra quem se achava 8.

Mudou tudo. Ressignificou tudo. Sei que é besta, repensar quem somos a partir de um número, mas não é sempre assim? Com 1 ano, sua preocupação é perder o seio da mãe; aos 13 é ter seios iguais aos dela; aos 30, ser o seio dos filhos; aos 39 ainda os ter desejáveis; pra frente, que não lhe apareçam caroços neles.

Um dia me contaram que o Y sempre respinga no mapa numerológico, que sua vibração nunca é superada.

Mas achei outro jeito de lidar com ele: em vez de lamentar os desvios no caminho, resolvo encarar o Y como um funil, por onde as experiências diferentes que tenho na vida vão escoando. O funil é estreito; elas escoarão, portanto, lentamente – e assim arrasto o fim desta autobiografia pra um número, oxalá, próximo de 100.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012



- Posted using BlogPress from my iPad

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Joyce revê Paulo Coelho

Parece improvável, mas recentemente o escritor brasileiro Paulo Coelho provocou literatos no mundo inteiro ao dizer que o clássico livro de James Joyce, Ulysses, caberia em 140 caracteres do Twitter. As reações dos fãs de Joyce foram indignadas, ainda mais porque, comparados os talentos literários de um e de outro, Paulo Coelho costuma ser desclassificado da categoria escritor.

Paulo Coelho, indiferente às comparações, postou o tuíte-resumo da obra-prima. Muitos avaliaram se foi válido ou não. Mas fiquei curiosa do que teria pensado o próprio Joyce, e ele me disse:

"O Alquimista, 65 milhões de livros vendidos. O quinto livro mais vendido no mundo. Harry Potter vendeu 400 milhões, mas eram 7 volumes. Vêm em terceiro lugar. O quarto é ocupado por O Senhor dos Anéis: 103 milhões. Só que são 3 volumes. O primeiro e o segundo lugar, ocupados, respectivamente, pela Bíblia e O Livro Vermelho de Mao Tse-Tung não valem: foram escritos por deuses. Bem, um nem tanto deus. Mas esse quinto lugar, ocupado na condição de livro sozinho, o autor desse aí tentou me pegar.

Aceito que tenham saído em minha defesa. Fico lisonjeado que meus fãs tenham dito ser impossível reduzir-me a um – como se chama mesmo este estranho mecanismo de forçar a criatividade que vocês criaram neste século? Ah, sim –, reduzir-me a um tuíte. Também acho prepotente: Ulysses em um tuíte.

Mas de certa forma me pareceu justo: se eu transformei um dia em dezenas de horas de leitura, é razoável que tenham transformado centenas de dias de meu esforço numa leitura de segundos. É uma transformação que se pode chamar de alquímica.

Enganam-se se acham que fiquei incomodado com isso.

Em realidade, diverti-me: se o tuíte tivesse vindo do autor do primeiro livro mais vendido, eu correria o risco de virar Verdade; se tivesse vindo do segundo, viraria revolução; se viesse da terceira autora, viraria fantasia; do quarto, loucura. Mas vim do quinto, e virei provocação.

Quer saber? Foi o único revisor diferente que em verdade tive. Antes dele, só eu havia cometido a insanidade de reescrever e revisar meus textos.

James Joyce"

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

domingo, 26 de agosto de 2012

Inconvênios - O Brasil não anima ninguém #2

– Tá sabendo que vão sair?
– Não, não é possível. Falei ontem com meu cunhado e ele não me disse nada.
– Ele não te falaria nada, Gustavo. Mas é fonte garantida. Todos vão se descredenciar ao mesmo tempo. Daí a Associação é que vai negociar o repasse da categoria com o Convênio. Tiro certo, não tem erro.
– Anestesista sempre vai na veia, né?
– E vocês? R$ 48,00 a consulta é dose, hein?
– Era 48... Reduziram 20%...
– Mais um motivo; vocês não conseguem fazer como eles?
– Pra mim não é interessante, Gustavo. Se eu fosse viver de consulta eu já tinha fechado o consultório. Mas preciso do Convênio pras cirurgias, você sabe.
– Sei, comissão das próteses e dos pinos. Vocês, ortopedistas...
– Não me critique; ou é isso ou eu já tava com as perna quebrada. E sua clínica, vai bem?
– Difícil, cara. Imagina que agora o Conselho não me deixa contratar sem registro. Sabe quanto eu ganho do Convênio por sessão?
– Bem, se a consulta o repasse é 48, a sessão deve ficar uns 18, 20...
– 3 reais.
– Ah, cê tá de sacanagem, Gustavo! Ainda tá assim? Pensei que vocês já tinham aumentado.
– Não, o que eu tava fazendo é contratar quarto-anista. Agora não pode, só fisioterapeuta formado.
– E com registro?
– Com registro em carteira.
– O que você pode fazer?
– Já fiz: coloquei pilates na clínica. O paciente da fisio sai e a gente manda ele pro pilates. 70 a hora. É o que tá colocando as finanças no lugar.
– É, não tá fácil pra ninguém.

No noticiário das oito:
"Acompanhe agora a reportagem com o especialista em finanças pessoais Silvio Duarte. Ele responderá a uma dúvida que muitas famílias brasileiras têm: como se proteger com gastos de saúde."
"Silvia tem 45 anos. Divorciada há 3 anos, ainda possui um plano de saúde em conjunto com o ex-marido, onde estão incluídos também seus dois filhos de 12 e 9 anos de idade. Silvia quer gastar menos com o plano."
"– A dúvida que eu tenho é se valeria a pena continuar pagando um plano de saúde ou se eu poderia fazer uma poupança para internações e exames caros. O que eu vejo é que meu plano aumenta todos os anos e cada vez tem menos médico aceitando consulta pelo convênio. Se eu precisar de uma cirurgia, que valor eu teria que ter na poupança?"

– Ivanir, por email, ao seu irmão Eduardo, que mora nos Estados Unidos:
Oi, Duda, td bem?
Entao, tive ontem no escritorio do advogado e parece que so com recurso mesmo. O plano eh obrigado pagar a cirurgia da mae. Mesmo o medico dela nao sendo do convenio, ele tem que pagar. O advogado me explicou que o hospital emite o comprovante das despesas com internacao, material e equipamento, mas todo o honorario da equipe fica de fora. Os honorarios ficariam em R$ 5 mil. O anestesista o convenio reembolsa.
E ai?
– Eduardo, por email, respondendo à irmã:
Mas pq nao reembolsa os 5 mil tb?
Bj
– Ivanir, em resposta ao irmão:
Nao eh que nao reembosa. Ate reembolsa, mas o medico so faz a cirurgia com particular. A mae nao quer operar com outro, nao confia. E tb nao acharemos nenhum outro. Ja fomos em quatro e ninguem opera pelo plano. A gente so paga o advogado depois que vier o reembolso.

– Tá em forma, hein, Fred?! Tá com tempo livre, acho que tô te pagando bem demais. (risos cordiais)
– Conselheiro, quem tem handicap 8 aqui é o senhor. Eu só estou com sorte. Hoje nenhum bunker me segura.
O caddie recomendava um novo ferro ao Conselheiro, que aceitava, bem humorado, dirigindo-se ao advogado Fred:
– Eu dei uma lida nos resultados, estes processos de reembolso estão aumentando, Fred. Aumentaram 35% em um ano.
– Não me culpe, eu só trabalho com a lei.
O conselheiro soltou uma risada irônica, que atrapalhou sua swing. Fred sentiu a boa sorte ameaçada por um súbito mau humor do conselheiro. Lembrou:
– Mas pense que vocês poderiam ter que pagar tudo, inclusive os honorários. No final, vocês não estão gastando, estão economizando.
– De qualquer forma, vou diminuir sua comissão pra 2% se esses processos de reembolso não diminuírem 20% em 18 meses.
Batendo um slice verdadeiramente infeliz, o advogado pensou consigo: – Dois por cento... como se eu já não lhe fizesse um favor. O Brasil não anima ninguém.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012
baseado em inacreditáveis fatos reais
da série O Brasil Não Anima Ninguém


- Posted using BlogPress from my iPad

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Eletrocutados – O Brasil não anima ninguém #1

O feliz do assalariado compra uma máquina de café expresso. Valeu a pena, pensa, antes pagava R$ 3,00 por um cafezinho decente, agora pode fazer seu próprio expresso em casa.

Na hora de ligar a máquina, sua animação cai: o plugue do aparelho não entra na tomada. As tomadas de formato antigo, que na hora de comprar a casa nova em 2010 pareciam boas – porque seus aparelhos domésticos eram todos velhos – , agora pareciam ruins. Ele xinga o empreiteiro, que deve ter colocado tomada nova só pra tirar o habite-se e depois trocou tudo na hora de vender.

Hoje não poderá provar o cafezinho. Terá que comprar um adaptador pro plugue da cafeteira. Isso o deixa um pouco aborrecido, pois dispenderá tempo, energia e dinheiro.

A mulher pergunta se não valeria a pena trocar logo a tomada, considerando que os aparelhos novos vêm com plugue padrão. Ele lembra a tostadeira para pães, que tem plugue antigo, e que sairia mais caro trocar o cabo de alimentação dela que comprar um adaptador pro plugue da cafeteira. Você não pensa direito, ela rebate, chateada que tenham uma tostadeira em tão mal estado de conservação. Calcula que será a próxima compra do casal e lembra que não precisam trocar o cabo da velha, basta comprar um adaptador pro padrão da tomada nova. Ele cede: vai instalar a tomada nova e comprará o adaptador pra tostadeira velha.

No dia seguinte, ele não instala a tomada. É cuidadoso, quer desligar o quadro de luz e só volta do trabalho tarde da noite, quando já tá escuro. Espera até sábado e troca a tomada logo depois do almoço, é coisa rapidinha, assim não precisa coar o café e eles podem tomar um expresso caprichado.

Tomada nova, depois de colocar o adaptador no plugue da tostadeira antiga, tenta plugar a máquina de café. Entrou?, pergunta a esposa. Puta que pariu, que merda é esta? Não entra, Gilza. A tomada não entra! Como não entra?, ela fala. Vê se tem o selo do INMETRO na embalagem da máquina? Ela verifica: tem. Por que não encaixa então? O adaptador da tostadeira, ele entra?, ela quer saber. Entra!

Com raiva, ele pega o carro, sai, gasta tempo, energia e dinheiro e compra um adaptador pro plugue da máquina de expresso. Já não está aborrecido, está furioso e questiona: se é padrão, como é que o plugue não entra na tomada nova?

Assim se passam alguns meses, aqueles adaptadores pendurados nos plugues da cafeteira e da tostadeira. O casal acredita que deve ter comprado uma máquina de expresso modelo antigo, quer dizer, que já devia estar embalada faz tempo e por isso não tinha ainda o plugue no formato novo – embora o plugue se parecesse exatamente com o formato novo, como eles pesquisaram na internet.

Quando compram uma nova tostadeira, têm certeza de que o plugue entra. É de manhã, sexta, o marido não saiu pra comprar pão fresco, porque ia estrear a tostadeira, esquentando o pão amanhecido.

Inacreditável! O plugue da tostadeira, que é novinha, lançamento 2012, não entra na tomada. Vou ligar no 0800; não, péra, tem que esperar até 9 horas senão ninguém atende. Liga você porque preciso sair pra trabalhar, ele pede à esposa.

- Alô! Sim, quero falar com o atendimento a clientes. É que comprei uma tostadeira… Qual modelo? Hum, tem escrito isso em algum lugar?… Vou ter que descer a escada pra ir na cozinha, você espera?… Tá, achei, é o modelo XPTO. O problema é que o plugue não encaixa na tomada. Se a tomada é no padrão novo? Sim, claro que é. Você vai me passar pro engenheiro responsável? Tá, espero. (…) Oi, bom dia. O que eu queria dizer é que a gente comprou uma tostadeira da sua empresa e o plugue dela é mais grosso que o buraco na tomada. Sim, a tomada é nova, trocamos nesta semana.

- Senhora, o que ocorre é o seguinte: a senhora terá que comprar um adaptador.

- Como assim, não é padrão?

- Pois é, é difícil pra gente também. O INMETRO tem um padrão com pino de calibre 4 mm pra aparelho que puxa menos de 1.500W e outro, de calibre maior, com 4,8 mm, praqueles que puxam mais.

- Ah, cê tá bricando! Quer dizer que a tomada era pra ser padrão, mas não é?

- Isso, infelizmente; fica difícil pra gente também; temos que pedir aos nossos clientes que comprem adaptador quando a tomada não encaixa.

- Caramba! Mas não era pra ser seguro? A gente sabe que usar adaptador com aparelho elétrico não é recomendado…

- Pois é. Alguém deve ter ganhado muito dinheiro com isso.

Gilza desliga o telefone. Vai e liga pro marido, pra lhe contar a história. Ele acha um absurdo. O novo Padrão Brasileiro de Plugues e Tomadas não é tão padrão assim e, a menos que você seja do ramo, nunca saberá se deve instalar uma tomada com furos de 4 mm ou de 4,8 mm de calibre, se é que esta distinção está afixada nas gôndolas que vendem tomadas .

Bebendo um expresso com os amigos de trabalho na cafeteria da esquina, ele conta a confusão. Já não está furioso. Está em choque. O Brasil não anima ninguém.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

baseado em inacreditáveis fatos reais

da série O Brasil Não Anima Ninguém

O Brasil não anima ninguém – a série

Em 05 de abril de 1993, o jornalista Daniel Piza entrevistava o pintor Iberê Camargo para a Folha de São Paulo. Falecido aos 79 um ano depois, o artista deixou um acervo de mais de 7 mil obras e era considerado, por muitos, o “maior pintor brasileiro vivo”.

Na entrevista, Daniel Piza menciona o epíteto, indiretamente perguntando se o pintor queria ter seu lugar na história. A resposta de Iberê colocou um ponto final na questão:

“O Brasil não anima ninguém. Enquanto conversamos, o rio Guaíba aqui fora está virando um córrego miserável, sujo, e ninguém faz nada. Eu estou na luta, é só.” (in: Perfis & Entrevistas de Daniel Piza, Editora Contexto, 2004)

Na sequência da entrevista, Iberê ainda declarou que o Brasil era um gigante com cabeça de galinha, lamentando o fato de que uma série que tinha pintado para arrecadar fundos para portadores de HIV não ter vendido bem.

De minha parte, acho que nada mudou muito de 93 para cá. Lamentavelmente, a única coisa que conseguimos enxergar com a estabilidade da moeda e o crescimento econômico foi a possibilidade de comprar mais e ganhar mais.

Já disse a alguns amigos que a pior lição dos últimos governos é que eles ensinaram, pelo exemplo, que é indiscutível termos direitos, mas é uma idiotice ter deveres. No século XXI brasileiro, pode-se sempre mais, nunca menos.

Abro meu blog de crônicas para a série “O Brasil não anima ninguém” em que vou escrever sobre assuntos que mostram que, em se tratando do governo e de seus fornecedores, Iberê Camargo continua tendo razão. O Brasil virou um país sem subtrações.

Iberê, também estou na luta.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Madame, não!

Madame era bem nascida, filha de usineiro do Nordeste. Tinha o passaporte carimbado de antes de nascer, que sua mãe, super vip, fez ultrassom 3D e colocou a foto pro consulado carimbar. Nasceu em Sergipe, mas só nasceu lá, que a mãe achava bonito a filha ter raízes. Desenraizou-se logo, com quarenta e um dias tomou a ponte-aérea São Paulo – Nova York só de ida. Quando teve idade para viajar de menor desacompanhada, pulou carnaval na casa da tia, conheceu o frevo da sacada, achava engraçado o sotaque das primas que não achavam graça nenhuma de não terem o sotaque dela. Com a idade de treze anos o pai lhe disse você é uma moça e agora deve se instruir: mandou-a pra Suíça. Aprendeu mais uma terceira língua, assim, fácil, de ficar de conversa com as amigas do colégio. A faculdade fez de Design, mas foi em Milão, quando alçou voo até Barcelona, para um estágio não remunerado sustentado pelo pai, usineiro. Agora tinha já vinte e cinco anos e quis seguir carreira própria, era muito inteligente, muito disciplinada, recebeu incentivo de todos os amigos do pai e da mãe, dos amigos dos amigos do pai e das amigas das amigas da mãe: montou uma importadora de roupas para atender a todos eles que achavam incrivel como ela se vestia. Foi a primeira que trouxe aquelas marcas bacanas para o Brasil, e então se apaixonou. O noivo, sucessor de forte grupo industrial com base em São Paulo, promissor executivo de 42 anos. O casamento movimentou as duas fortunas, os amigos dos amigos dos amigos de ambos mãe e pai, mãe e pai, e comprovou o bom gosto da herdeira do usineiro, em breve, também mãe dos herdeiros do industriário. Vendeu a loja para admiradores, dedicou-se com afinco à educação dos filhos, à decoração do novo lar, aos compromissos sociais da agenda do marido. Foi convidada a posar para revistas de moda como símbolo da nova consumidora do luxo no Brasil. Pousou, mas então não era mais madame. Era chamada, agora, de corporate wife. E quem duvide que procure nas revistas. Alcunhas fazem muita diferença na hora de vender biografias.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O que nos cansa.

Sabe o que é cansativo hoje?

É quando eu quero a opinião de um jornal sobre livros, ele me abre uma lista de blogueiros; quando eu quero ler sobre decoração numa revista, ela me direciona pra sua loja virtual; e quando eu quero comprar uma roupa, a loja me envia o link de sua comunidade online.

Chega! Pelo amor de deus, voltemos ao básico.

Num jornal, dê-me a edição; numa revista, dê-me a seleção; numa loja, dê-me produtos. E não me dê blog nenhum – eu mesma acho; não me dê ecommerce nenhum – eu não caio nessa; não me dê comunidade nenhuma – não quero me relacionar, só comprar.

O que nos cansa hoje é que todo mundo acha que pode fazer de tudo – e você acaba se sentindo na obrigação de fazer também.

Nunca conseguirei entender porque o blog com receitas incríveis do Caldo Knorr pode me ensinar a cozinhar melhor que o Livro de Receitas da D. Benta; jamais entenderei como a loja virtual da Minha Casa pode vender melhor que a Tok Stok; e com certeza não há explicações que me convençam que seja mais vantajoso descobrir a programação cultural da cidade através dos comentários dos leitores em vez de abrir a página de cultura do jornal.

A melhor coisa do jornalismo é a edição. Sim, é a melhor e a pior coisa – mas é o que o diferencia. Quando um jornal deixa de editar e enfia um monte de blogueiros e colunistas para dar a notícia, vira o caos. Pra que ler jornal, então?

A melhor coisa de uma revista é a seleção. Sim, outra palavra para edição – mas é o que a diferencia. Quando uma revista deixa de selecionar e passa a vender, vira publicidade. Pra que ler revista, então?

A melhor coisa de uma loja são os produtos. Sim, os produtos não se vendem sozinhos – mas é o que a diferencia. Quando uma loja começa a vender mais os seus clientes que seus produtos vira confraternização. Pra quer comprar na loja, então?

Para nos cansarmos menos, devemos focar. O conselho vale para consumidores, evidentemente, e para empresários, naturalmente. Mas vale também para funcionários: ou vocês acham que a empresa vai montar uma equipe nova só pra cuidar do ecommerce, das redes sociais, do programa de afiliados e deixar vocês trabalhando na velha planilha de custos de antes?

Quando sua empresa vier com a ideia de atirar para todos os lados, seja o primeiro a dizer olhando nos olhos dos colegas: Ah, não, vocês querem se cansar mais ainda? Você terá feito uma boa ação. Uma só, que mais de uma cansa.

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Paguem royalties a Napoleão.

Napoleão Bonaparte foi um cara amado e odiado em seu tempo. Substituiu a ambição religiosa pela glória militar no imaginário francês. Vendeu-se como o governante ideal aos anseios burgueses na França pos-revolucionária. E não foi só. Pilhando estátuas, quadros e manuscritos dos derrotados de suas batalhas pela Europa, engordou o Louvre a ponto dele se tornar o maior museu a sua época. Mas acabou desterrado. Quando reis eram decaptados, deve ter sido aliviante, a um imperador, ser apenas exilado.

Napoleão rende inúmeras piadinhas, das mais infames às mais inteligentes. Rendeu recentemente um livro em que tentarm enxergar naquele temperamento megalômano e criativo a excelência de um CEO de empresas multimilionárias. Mas está perdendo a fama. Se pergunto aos meus filhos qual era a cor do cavalo branco de Napoleão, eles acertam a resposta, mas vêm com a dúvida: quem era Napoleão, mamãe? Quando era eu com a idade deles, questionaria: é, mas já vi num livro um quadro dele montado em cavalo marrom.

Quase duzentos anos após sua morte, que apelo Napoleão poderia ter para a garotada?

Eu também acho que nenhum.

Mas então abro uma caixa de chicletes Mentos, que vem com o nome UP2U, em que o truque é, na mesma embalagem, você ter 7 unidades de chiclete sabor tutti-frutti mentolado e 7 chicletes sabor menta. Qual a jogada? Na dúvida entre um sabor e outro, leve os dois. Até aí, nada de mais. Um case banal de marketing.

Até que você se depara com uma citação de Bonaparte no interior da embalagem:

“Nada é mais difícil, e por isso mais precioso, do que ser capaz de decidir.”

Putz, perdi a vontade de mascar o chiclete. Não é possivel que precisem de tanto aval e gravidade para vender uma simples caixa de chiclete que, por si só, já é vendável em sua embalagem prata toda linda.

Fico pensando que raio de briefing deve ter gerado a necessidade dessa citação, que coordenador de comunicação ficou cavando o Google à noite para propor à sua gerente que propôs ao seu diretor que usassem a frase de Napoleão para apoiarem o novo lançamento. E fico imaginando o atendimento da agência recebendo o briefing e repassando a frase para o incrédulo diretor de criação, que se vira para o redator, que lê a frase escrita no papel, que reclama:

“Eu não escrevo esta campanha. Paguem royalties a Napoleão.”

Nada é mais ridículo do que quando o marketing quer emprestar gravidade àquilo que absolutamente não precisa ter.

Mas, no final, a campanha sai do mesmo jeito. Só fica o lamento por Napoleão, de novo alvo de piadinhas.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A decisão complexa do apoio.

A Sociedade Vegetariana Brasileira conseguiu, nas suas palavras, “um apoio de peso” para a campanha Segunda Sem Carne: a chefe da Casa Civil, a ministra Gleisi Hoffmann.

A ministra, que é de Curitiba, já era vegetariana, mas não fazia alarde de sua dieta. Faz pouco mais de um ano que ela saiu da cidade para ser empossada em Brasília, e nem antes, nem durante – apenas agora, depois – resolveu fazer bandeira com uma causa que lhe é particular.

Nós, vegetarianos, estamos todos comemorando. Ou mais ou menos eu, porque o diacho da contemporaneidade é que tudo é complexo – nada, nunca, tem apenas prós ou apenas contras, mas prós e contras na mesma medida.

Quando Dilma era a ministra-chefe da Casa Civil, a Casa Civil era alguma coisa de importante. Que é a Casa Civil agora? Todo mundo sabe que entregar a Casa Civil a Gleisi foi um prêmio de consolação: o PAC tinha passado para a pasta do Ministério do Planejamento e o marido de Gleisi, contra expectativas, tinha ficado apenas com o Ministério das Comunicações.

É legal termos uma ministra vegetariana apoiando a Segunda Sem Carne. Decerto. Mas ela, na Casa Civil, é quase uma primeira-dama. Em termos de primeiras-damas, o Brasil – com exceção de D. Ruth Cardoso – nunca ganhou muito com elas.

As primeiras-damas, por aqui, sempre chamam mais atenção pelos seus disparates e futilidades – e temo que seu apoio à campanha, aos olhos de 91% dos brasileiros não-vegetarianos, soe esdrúxula.

Por outro lado, congratular a adesão de Gleisi é, indiretamente, bater palmas à política ambiental do PT. A Segunda Sem Carne é uma campanha essencialmente ecológica. Ela foi inspirada na campanha Meat Free Mondays de Paul McCartney.

As pessoas que têm aderido à campanha são, em sua maior parte, celebridades descomprometidas com política. As implicações políticas da campanha são graves e parece que os políticos preferem não se comprometer com elas.

Em Curitiba, quando a Segunda Sem Carne foi lançada dentro do Mercado Municipal, a prefeitura recebeu protestos dos açouges do Mercado. Isso quase levou a campanha à pique. Imagine então o que significa um político de “expressão” nacional apoiar a campanha? Ao invés de varejistas da carne, virão os importantes frigoríficos que apoiaram a eleição de Dilma, como o JBS, criticá-los.

A Segunda Sem Carne quer mostrar uma coisa só: parar de comer carne é a única solúvel viável, de médio prazo (no curto não há nenhuma), para conter a derrocada do meio-ambiente. Ela traz pras mãos dos cidadãos a decisão de fazer alguma coisa, já que, quando protestamos, o governo não nos ouve (ou Dilma teria vetado a totalidade do Código Florestal). 

O receio é de que a camiseta da Segunda Sem Carne empunhada na foto de Gleisi esvazie a campanha do que ela tem de mais forte: a denúncia às políticas ambientais do governo federal que privilegiam latifundiários e grupos frigoríficos em vez da agricultura familiar e orgânica.

Gleisi segurando a camiseta da campanha é, por determinado viés, algo fútil. Transforma a campanha em uma coisa que celebridades fazem – afinal, eles estão sempre apoiando causas sociais porque não têm mais nada de importante pra fazer.

Apoio, apoio mesmo seria Gleisi dizer que é vegetariana e fazer o Brasil conhecer que a Amazônia é desmatada por causa da demanda por pasto e soja para alimentar o gado que financiou a campanha do PT nos últimos 10 anos.

Enquanto um político estiver no poder, segurar uma camiseta é o mínimo mais nefasto a uma causa que ele pode fazer.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

A minha opinião é só minha e não reflete a opinião da SVB.

domingo, 17 de junho de 2012

Menos, Vogue; quer dizer, mais.

Logo depois de eu ter escrito sobre a ditadura da magreza, topo com um aviso do grupo que publica a revista Vogue pelo mundo afora: a de que as editoras-chefes das 19 edições internacionais da revista assinaram um pacto para valorizar a imagem de um padrão corporal possível e saudável em suas páginas de moda. O padrão corporal está tão magro – o chamado size zero – que apenas meninas (magras) na puberdade ou adolescência podem ser usadas nas fotos.

A carta de intenções, intitulada The Health Initiative (publicada na edição da Vogue Brasil de junho de 2012) é tão autocentrada que preciso reproduzi-la aqui e depois comento.

“1. Não trabalharemos conscientemente com modelos com menos de 16 anos ou que pareçam ter algum tipo de distúrbio alimentar. Escolheremos modelos que, em nossa opinião, sejam saudáveis e ajudem a promover uma imagem corporal sã.

2. Pediremos aos bookers e às agências que não nos indiquem modelos com menos de 16 anos e também faremos lobby junto aos diretores de casting para que verifiquem identidades antes de marcar um ensaio, desfile ou campanha.

3. Ajudaremos a estruturar um programa em que as modelos mais maduras possam aconselhar e guiar as mais jovens e nos empenharemos em aumentar a conscientização de toda a indústria da moda através da educação, como tem sido a base fundamental do The Health Iniative do CFDA (Counsil of Fashion Designers of America)

4. Nos comprometeremos a criar boas condições de trabalho para as modelos, com alimentação saudável, respeito à privacidade e horários justos.

5. Incentivaremos os estilistas a pensarem nas consequências de produzir peças extremamente pequenas, o que acaba por limitar a gama de mulheres que podem ser fotografadas nelas, estimulando o uso de modelos muito magras.

6. Seremos embaixadoras da imagem corporal saudável, na revista e fora dela.”

E aí, qual foi sua reação? A minha foi de indignação. Embora eu seja partidária de que o ótimo é inimigo do bom, às vezes é melhor não tentar melhorar, pois piora. Comento:

Item 1: o que é exatamente “não trabalharemos conscientemente”? Quer dizer que as meninas falsificam a identidade para poder trabalhar na indústria da moda? Se você olhar uma menina e achar que ela está mentindo sobre sua idade e sobre seu documento de identidade, sua consciência vai agir como? “Ah, deixa passar” ou vai dizer “melhor não”? E se uma menina vier com emancipação legal, aí tudo bem dela ser fotografada com 16 anos? Outra coisa: como se define distúrbio alimentar? Será preciso flagrá-la vomitando no banheiro ou será preciso fuçar em sua bolsa pra saber se ela toma drogas pra inibir/suprimir o apetite? Como a Vogue conciliará estas resoluções com a de manter a privacidade das meninas (item 4)? E, finalmente, o que é a opinião da Vogue sobre ser saudável? Uma revista que publica, na mesma edição, o The Health Initiative e as matérias “Mulheres magras - As duas dietas radicais de Alexandra Farah” e “Corte radical - Daniela Falcão conta por que optou pela cirurgia de redução do estômago” pensa exatamente o quê sobre saúde?

Item 2: “pedir que não nos indiquem” é uma coisa: “exigir que todas as modelos tenham mais de 16 anos” me parece um coisa bem diferente. Por que não se comprometer com a proposta? Por que tanto receio de afirmar a posição perante seus colegas? Parece que a culpa de escolher modelos macérrimas não é da revista, mas das agências. Quem manda na revista, afinal? E é pra mudar ou é só pra posar de bonito?

Item 5: Acho que é o item mais cínico de todos. Se a Vogue manda no negócio, basta não escolher o estilista que faz roupas pequenas, ponto! Se o cara acha que a Vogue é importante, ele que trate de fazer roupas maiores. Ou a Vogue se compromete ou é melhor dizer de uma vez que, ora, “eu jamais vou sacrificar um editorial de moda porque a roupa é pequena demais!”

Se a Vogue quer realmente se comprometer em não acabar com a autoestima das mulheres, se ela acredita que realmente vem contribuindo para que as mulheres persigam a qualquer custo uma aparência irreal, esta deveria ser a carta de intenções:

1. Não usaremos photoshop ou programa similar para retocar corpo e rosto de modelos.

2. Trabalharemos apenas com modelos que tenham uma aparência de peso saudável. Como o critério “aparência” é subjetivo e como não é competência jornalística definir o quanto uma modelo é saudável ou não, mas sim de profissionais de saúde, adotaremos o critério de Índice de Massa Corporal (IMC) como parâmetro para determinação de um peso saudável. Sendo assim, trabalharemos com modelos que tenham, no momento da foto, IMC considerado normal.

3. Não trabalharemos com modelos com menos de 16 anos de idade, emancipadas legalmente ou não.

Pronto. Se a Vogue se comprometesse com isso, nada daquela blá-blá-blá subjetivo seria necessário. A reinvindicação é: menos cinismo, mais realidade; menos subjetividade, mais objetividade; menos preconceito, mais empatia; menos magreza, mais corpos comuns; menos saúde perfeita, mais saúde possível.

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Tolerância magra.

Não acho que vivamos uma ditadura da beleza. Afinal, feios não são caçados, nem trancafiados. Leio regularmente revistas de moda e sempre fico pasma de ver um monte de modelo feia posando de bonita. Também fico boba de ver editoras de moda bem feinhas bancando as gostosas. Não são delírios do photoshop, porque estas que vejo não ficariam nem mais um pouco menos feias com todo o photoshop disponível.

Acontece que são magras.

A ditadura que vivemos é a da magreza. Gordos, obesos, acimas do peso, cheinhos, fofinhos – estes, sim, estes estão sendo sumariamente perseguidos. Não existe tolerância com pessoas não-magras: elas devem emagrecer ou desaparecer. Nem saudáveis mais se acredita que possam ser: não-magros não devem existir.

Numa destas revistas, li reportagem sobre uma editora de moda não-magra que emagreceu. Fiquei triste. Quero dizer: fiquei alegre por ela, ela queria e conseguiu; mas fiquei triste, pois perdemos uma rebelde. Vi que elogiaram uma vencedora do American Idol porque ela secou. Fiquei feliz por ela, queriam e conseguiram; mas fiquei desapontada, foi mais uma baixa.

Então vem aquele comercial de sabonete elogiando mulheres reais, e nenhuma delas é: todas são magras, ou são não-magras sem barriga. Fico melancólica, porque todas se encaixam.

Aquele ditado que não existe mulher feia, o que existe é mulher sem dinheiro, conhece? Ele está incompleto: uma mulher gorda com dinheiro, jamais a acharão bonita, nem com toda a arrumação do mundo.

Olhe a sua volta e veja o que a mídia de moda faz: ela chama qualquer imbecil de interessante apenas porque a pessoa é magra. Se desenhar roupas ridículas, ela é um stylist interessante. Se desenhar móveis ridículos, ela é um designer interessante. Se  não fizer nada na vida e tiver dinheiro, é uma it-person interessante. Se for não-magra, poderá ser um gênio, nem aparecerá na revista.

Apresentadores de TV também devem ser magros. Suspiro profundamente com o que fizeram àquela dupla e lamento mais o que a dupla fez à já tão combalida auto-estima das pessoas: junto com aqueles que compartilham que médicos são deuses, decretaram que não há estado não-magro saudável e que todos que não emagrecerem vão morrer em breve.

A loucura da magreza é tanta que site de seguro saúde e laboratório de análises clínicas traz calculadora de índice de massa corporal na home page. Parece que um IMC baixo vai nos livrar dos efeitos colaterais de toda esta porcaria que a indústria farmacêutica joga no mercado com anuência da ANVISA e autoridades médicas. Parece que perder peso é a única medicina preventiva, serve mais até que ser feliz. Se é que é possível alguém se achar feliz estando não-magro.

A única moralidade atual é ser magro. É por isso que aceitamos votar em políticos não-magros: porque é fato consumado que a política é o reino da imoralidade. Quando o brasileiro compactuar com a seriedade e a honestidade, nunca mais teremos presidentes cheinhos, pode escrever.

Certa vez eu li a notícia de um curso: “A verdadeira dieta da longevidade é a que faz restrições de calorias.” Me pareceu que minha teoria estivesse errada: não é a magreza nosso algoz. A magreza é apenas o laranja: nossa peçonha é a longevidade. Ninguém mais tem o direito de querer viver pouco. Com pouco, ainda vá lá, admite-se; mas muito.

Escrito por Mayra Corrêa e Castro, uma não-magra manequim 42.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Enfim, um sim.

Miniconto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

Sufoquei ante a imperiosa necessidade de discursar em público, meu maior medo. Um tapa nas costas e fi-lo pois sem um sim não há matrimônio.

 

Foi interessante participar deste concurso de minicontos com 140 caracteres. Para escrever o miniconto, parti da ideia original abaixo, que já era, por si, bastante enxuta. Veja o texto inicial que acabou sendo reduzido aos 140 caracteres:

“Sempre que me pediam para falar em público, era um tormento. Ficava vermelho, rouco, gago e engasgado, até ficar afônico. Mas naquele dia eu deveria discursar. Por mais que tivesse tentado, não havia nenhum modo de fugir àquele discurso, o mais importante de minha vida e que a definiria irremediavelmente a partir dali. Não pude convencer ninguém de que seria desnecessário discursar. Eu cria, com toda a razão, que minha presença já seria suficiente para selar meu comprometimento com a causa daquele discurso. “Em vão”, argumentaram: “Esqueça sua campanha, Horácio. Ou você fala o ‘sim’, ou o padre não sela seu matrimônio.” Convencido da absoluta necessidade de dizê-lo, fi-lo: mas com tanto nervosismo que engoli cada uma das palavras. No fim, creio que fui entendido por todos, posto que ganhei um beijo da noiva.”

 

Miniconto participante da antologia Geração em 140 Caracteres, ebook editado pela Geração Editorial.

O IPO de Adailê.

Conto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

Não que Adailê não amasse o marido. Vingar-se era um apelo de gênero. Viveram falta de dinheiro, filhos, meses sem sexo que fazem um casal desistir. Ela não desistiu nem no sabático para cuidar dos filhos. Quando conto isto, eles já são adultos. Como esperado, o sabático de Adailê se estendeu para o “dona de casa”.

O marido ascendia. De empregado a sócio; de um carro 1.0 para 3.0, moto, barco, adega. Tudo que Adailê conseguiu era não ter ficado burra e feia. Ela não queria ficar para trás.

Adailê tinha bons genes. Após vinte anos, não precisava muito para continuar bela. Para a burrice, desenvolveu estratégias. Nelas concentrava seus esforços. Mesmo sem trabalhar, mantinha hábitos executivos: lia revistas de economia, vestia-se bem. Ela dizia que um homem de negócios, como seu marido, só possuía interesse naquilo que desse lucro. Se ele olhasse para ela e visse ali um centro de custo dispendioso, a primeira coisa seria cortá-lo. Dando inveja a gurus, Adailê mantinha seu centro enxuto e permanecia em forma só com mesada.

Uma engenharia difícil: para economizar, Adailê fazia suas unhas e cabelo; ficava com roupas de caridade; usava academia do parque; lia revistas emprestadas. Eu mesma lhe dei minha senha para a leitura de um jornal.

Era um esforço sem reconhecimento. Eu teria explodido. Ela explodiu também, só que fez antes o planejamento estratégico. Começou assim: ela queria ler uma revista que o marido assinava. Sempre preocupada com seu fluxo de caixa, pediu ao marido que trouxesse a revista do escritório. Ele nunca trazia. Isto bastou para minar o romantismo dela: quis ultrapassar o marido.

Começou aplicar suas economias e chegou a um patrimônio no valor que o marido havia despendido em bens móveis, imóveis e gastronômicos. O passo conclusivo seria pedir o divórcio. Adailê me explicou que IPOs bem sucedidos são engendrados no drama. Ela aguardou o seu.

Num domingo, o marido tinha saído com clientes. Ela pediu as revistas que ficavam no barco. Ele falou: “Você me enche com estas revistas!”. Enquanto ouvia o ronco da moto, Adailê foi ao micro e imprimiu uma página. Depois foi à garagem. De seu carro tirou dez caixas e as colocou no porta-malas do carro do marido. À noite, ele chegou exultante, mas ela estava séria.

- Algo errado?

- Sim. Trouxe as revistas?

O marido achou absurdo que ela só pensasse naquelas malditas revistas. Ironizou:

- TPM?

Adailê percebeu a oportunidade e resolveu lançar seu IPO. Pediu o divórcio e entregou o papel. Eram as condições. Surgiu com uma mala e desceu à garagem. Ele não sabia se lia o papel ou a seguia. Quando se resolveu, correu e a viu ir.

O ex-marido percebeu que o divórcio o arruinaria. Olhou para o carro e notou as caixas. Abrindo o porta-malas, rasgou-as sem acreditar no conteúdo: coleções de revistas de negócios. Encontrou um bilhete: “Engula ou enfie.” Junto dele havia o cartão de visitas de uma consultoria. Ele leu: “Para futuras ex-donas de casas. Adailê Marquezine, CEO”.

 

Este conto também foi enviado para o 4º Concurso de Contos das Livrarias Curitiba, edição 2012. Teve a limitação de 3 mil caracteres. Não foi selecionado.

A mãe que emprestava sonhos.

Conto escrito por Mayra Corrêa e Castro

 

O filho vinha acordando com pesadelos. A mãe acudia:

- Foi pesadelo. Dorme.

O menino passou a acordar todas as noites. Ela teve uma ideia: ensiná-lo como não ter pesadelo.

- Junte os dedos assim. - O filho imitava. - Agora repita: "Não vou ter pesadelo”.

Da primeira vez, deu certo. O filho dormiu a noite toda. Deu certo na segunda vez, até que ele falou:

- Mãe, não tá dando certo. Continuo sonhando com lobisomem.

A mãe concluiu que tinha errado a técnica. Corrigindo, garantiu:

- Agora vai funcionar! - Juntou ela mesma os dedos polegar, indicador e médio, colocou a ponta dos três no centro da testa e disse: - Mamãe vai passar bons sonhos para o Luca. - Era Luca o nome de seu rebento. Encostando os dedos no centro na testa do filho, finalizou: - Tic, tic, tic.

O filho dormiu tranquilo. O mesmo aconteceu por noites seguidas. Aquilo tinha virado um hábito. Se a mãe esquecesse o “tic, tic”, o filho levantava vindo cobrá-la.

Certo dia, levando a ponta dos seus dedos à testa do filho, ele fez a pergunta:

- Mãe, você tá com este machucado na testa de tanto dar sonhos pra mim?

A mãe riu. Pareceu que seu filho a amava muito por se sentir tão preocupado.

- Não, Luca, este machucado foi mamãe que cutucou. - E foi se deitar rindo da imaginação das crianças.

Naquela noite, fazia muito calor. Ela dormiu mal, realmente mal. E teve pesadelos.

Na noite seguinte, o filho notou que o machucado da mãe ainda estava lá:

- Não sarou?

- Não, filho. Às vezes demora. - Nesta noite, ela teve novos pesadelos.

Ao cabo de um mês, como o filho a lembrasse do machucado que não sarava, ela ficou preocupada. Não dormia mais direito e o machucado tinha um aspecto grotesco. Para disfarçá-lo, havia deixado a franja crescer.

Luca percebia que sua mãe estava triste e quando vinha lhe dar boa noite, ela sempre brigava: - Preciso dormir!

O filho dirigia um olhar temeroso para a testa da mãe. Então resolveu: com toda a braveza de um menino que agora estava no 1º ano do ensino fundamental, disse à mãe:

- Hoje não precisa fazer “tic, tic”. - A mãe olhou desconfiada.

- Tem certeza? Depois não vai me acordar? - O moleque fez que sim.

Tereza dormiu; dormiu longas horas. Até sonhou que dormia.

O dia raiou. Tereza levantou da cama sentindo-se muito bem. Viu o filho:

- Bom dia! Dormiu bem?

- Não, mãe. Tive pesadelo. - Aflita, tomou Luca no colo.

- É por que não fiz o “tic, tic”? - Tereza estava cheia de culpa. Soltando-se dos braços da mãe, Luca respondeu:

- Eu que quis, mãe. Matei o lobisomem.

Indo se arrumar, Tereza tomou a escova para alisar a franja. Era uma hora difícil, pois mesmo um leve toque na ferida doía. Mas ela tinha feito a escova sem dor alguma. Por um breve momento, Tereza pensou se seria possível que...

Na escola, Luca preparava um cartão para o Dia das Mães. Ele tinha desenhado sua mãe e foi mostrar à professora.

- Luca - inquiriu a professora -, você desenhou sua mãe sem cabelo? - Ele levantou as sobrancelhas:

- Não é cabelo. É franja. Ela não tem mais franja.

 

Este conto foi enviado para o 4º Concurso de Contos das Livrarias Curitiba, edição 2012. Teve a limitação de 3 mil caracteres. Não foi selecionado.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Na faixa, pare.

Quando entrei pela primeira vez no carro de minha instrutora de reciclagem, eu estava tão, mas tão nervosa que nem li se na faixa amarela que envolvia seu corsinha de cabo a rabo vinha escrito autoescola ou não. Vi apenas que a cor era amarela e pra mim ficou de bom tamanho: só queria que as pessoas identificassem que eu não sabia dirigir e assim fossem mais pacientes com qualquer barbeiragem ou com os meus 30 quilômetros por hora.

Um carro destinado à reciclagem de motoristas habilitados é praticamente igual ao carro de autoescolas: duplo comando de freio e acelerador, um espelho retrovisor no parabrisa do passageiro, a tradicional faixa amarela na lataria.

Se bem que esta faixa pode ser uma faca de dois gumes. A maior parte das pessoas respeita, entende que você está aprendendo, não buzina, não cola na traseira, dá a preferência. Mas sempre tem aquele ser estúpido, que atende pelo nome de mal-educado, achando que o aluno de autoescola é a vítima perfeita para sustos. No geral, entretanto, a faixa mais ajuda que atrapalha.

Motoristas de reciclagem desfrutam das benesses desta faixa. Eu desfrutava, só que com requintes. Percebi que, no sinaleiro, as pessoas viravam o rosto para me olhar, e sorriam de forma complacente. Saindo de casa, um conhecido me viu dirigindo e me deu os parabéns. Além destas cortesias, era maravilhosamente fácil dirigir com um ônibus atrás, com um caminhão na frente – o corsinha parecia mágico.

Foi só lá pela minha décima ou décima-primeira aula que, mais tranquila, pude prestar atenção na faixa amarela na lateral do carro de minha instrutora: não estava escrito autoescola, mas reciclagem. Puxa, pensei, então estou dirigindo bem; ninguém teria benevolência com alguém que já sabe dirigir!

Meu orgulho durou pouco. Quando minha instrutora se foi, olhei a traseira do carro e lá estava escrito: direção defensiva. Quando ela subiu numa rampa para voltar, li o adesivo da frente: medo de dirigir.

Suspirei. Afinal as pessoas não eram boas comigo, elas apenas se afastavam do meu carro de medo que eu lhes batesse ou tivesse um surto psicótico no volante. Na época parecia constrangedor. Hoje, alguns milhares de quilômetros de mãetorista depois, acho que foi libertador: quantas vezes você tem chance de pegar o carro e dirigir como se tivesse uma sirene em cima, todos lhe dando passagem, hein?! Eu tive! E ainda posso contar a piada!

Falar e dirigir ao mesmo tempo

Um amigo meu, que também não dirigiu depois que tirou sua carteira de habilitação, tinha a mesma dificuldade que a minha: fazer curva, freiar, trocar marcha, acelerar e ainda olhar no espelho. Como ele, também acho esta uma habilidade invejável. Note que a pessoa que faz curva com carro de câmbio manual consegue executar cinco coisas ao mesmo tempo! É praticamente a habilidade de uma atleta de ginástica rítmica.

Quando a mim, curva é uma habilidade que só passou a ser natural quando mudei para o carro automático. Mas dirigi um corsinha manual. E fiz curvas, não é o máximo? Tudo bem que a 20 por hora, mas fiz!

Lembro que tinha pegado meu primeiro engarrafamento em Curitiba, na esquina da Dr. Faivre com a Conselheiro Araújo, aquele furdunço que desemboca no Círculo Militar. O corsinha era da minha instrutora, o anjo que me ajudou a dirigir depois de 20 anos sem pegar num volante. O clima estava tenso, eu tinha que controlar o carro apenas na embreagem e, entenda a situação: era meu primeiro engarrafamento no centro!

Esta minha instrutora falava, contava seus causos e eu achava bom que fosse assim, porque aliviava o stress. Quanto medo que eu tinha de bater no carro na frente! Mas eu também conversava com ela. Batíamos papo, o carro andava meio metro e parava, mais meio e parava. E continuávamos conversando.

A certa altura, ela parou e olhou bem na minha cara e percebeu minha aflição:

- Nossa, você quer que eu pare de falar? Isto atrapalha sua atenção?

Então me toquei de que eu possuía uma habilidade ímpar, que se manifestava mesmo diante de todo o medo que eu tinha de pôr as mãos num volante: eu sabia dirigir e falar ao mesmo tempo.

Ah, puxa vida: eu podia não ser boa em rampa, em curvas, deixava o carro morrer. Mas falar e dirigir ao mesmo tempo, bá, sensacional! Porque sou mulher, evidente. Nós fazemos qualquer coisa falando ao mesmo tempo. Ver TV: podemos falar o tempo todo e ainda entender a história. Comer: podemos falar o tempo todo e ainda manter a classe de não arrotar. Sexo? Fala sério; nem vou responder de tão óbvio.

Virei para o anjo de minha instrutora e lhe disse que continuasse falando, que estava tudo bem. Passamos finalmente pelo Círculo, entramos na Marechal e saí da aula realizada: eu tinha enfrentado o trânsito, levado minha primeira buzinada e podia relatar toda a experiência em live streaming. Falar e dirigir ao mesmo tempo é o máximo!

PS: Mas não ao celular. Segurar um celular enquanto se está dirigindo, como dizia Oprah Winfrey, is stupid! Use bluetooth ou simplesmente não fale, caramba!

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Jornalistas e Escritores.

A impressão que se tem hoje em dia é que todo livro bacana – o cara que escreveu é jornalista. Isso deve dar uma inveja danada aos escritores. Habituados à profissão da escrita, aqueles percorrem equipados o terreno pedregoso que estes insistem em trilhar descalços.

Jornalistas têm mais têmpera, parece. Ou vai ver que é só treino mesmo. Trabalhar sob pressão não tem nada de nobre nem de saudável; mas é uma dieta que pode tornar a escrita elegante.

Tradutores também, eles são como jornalistas: estão lá fazendo a ponte. Certa vez compararam tradutores a obstetras e escritores a gestantes. Se a criança vier bem ao mundo, a mãe sorri para seu lindo bebê, enquanto o médico é que se torna requisitado.

Podem até requisitar a mãe mais uma ou duas vezes. Porém, há um limite. Claro que ninguém fala das mães sertanejas, que geram sete, oito, nove, dez, onze – já se viram doze filhos perfeitos! Só que até mesmo aí, ao lado de uma mãe forte, quantas vezes mais filhos não terá posto no mundo este obstetra acostumado a tanto trabalho duro?

Jornalistas não devem nada a obstetras. Um escritor tem suas dores – quantas dores! O que tem o jornalista? Tem empatia? Tem. Sofre? Por decerto sofre também. A diferença é que, ao passo que a mãe pare e depois fica toda absorta na sua cria, o obstetra está a caminho da próxima maternidade e sempre disponível para envolver enfermagem e residentes na história de mais um nascimento singular.

Se houver uma história singular a caminho – veja só: é um jornalista que a estará contando.

(Este text,o eu o escrevi para a seleção à Oficina de Jornalismo Literário com Sérgio Vilas-Boas. Aliás, a oficina foi super bacana!)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Mentiras e Verdades do Trânsito.

Tirei a carteira de motorista aos 20 anos em Campinas, SP, quando ainda fazia faculdade. Depois que a recebi, providenciei uma gaveta bem funda e a deixei lá, mofando, por 18 anos.

Até que, com filhos pequenos, morando longe do trabalho, fazendo terapia e resolvendo assumir minha independência, voltei a dirigir aos 38 anos de idade. Entenda que a última vez em que eu tinha pegado numa direção foi no exame da auto-escola. Medo, pânico, receio, fobia, pré-ocupações, tudo que possa haver para eu não ter dirigido estes anos todos, tudo isto eu tinha.

Então estou dirigindo. Há exatos 7 meses, ando para baixo e para cima em Curitiba com meu carrinho automático (não dei conta da marcha manual, foi muito estressante).

Esta croniqueta é para dizer o que aprendi sobre o trânsito. Acho que uma pessoa, adulta, com filhos, que dirige pela (quase) primeira vez tem um olhar privilegiado sobre o trânsito. Vai aqui o meu:

 

  • O trânsito reflete a educação de um povo.
  • As pessoas não dão seta.
  • As pessoas passam com sinal vermelho.
  • As pessoas param em fila dupla.
  • As pessoas não respeitam a sinalização.
  • As pessoas odeiam respeitar limite de velocidade.
  • As pessoas até que buzinam pouco.
  • Os pedestres são imprudentes.
  • Os ciclistas são prudentes, mas cínicos.
  • Os motociclistas se dividem entre os prudentes e os kamikazes.
  • Há motoristas de ônibus gentis.
  • Idosos atravessam a rua sem olhar para os lados.
  • Há motoristas que guardam 1,5m de ciclistas.
  • Há curitibanos que dão a vez.
  • Não há fiscalização no trânsito, exceto para o EstaR.
  • Todo mundo que me corta acaba parando junto comigo no próximo semáforo.
  • Todo mundo que corre mais do que eu acaba chegando comigo no próximo semáforo.
  • Motoristas de táxis estão trabalhando.
  • Mães e pais na entrada e saída da escola estão em rota de colisão com você.
  • Há muitos cruzamentos que precisavam de semáforos em Curitiba.
  • Tem muito idiota falando ao celular enquanto dirige.
  • Motoristas tendem a ser cegos para faixas.
  • Você tem o direito de parar numa travessia preferencial de pedestre – isto não é errado!
  • Gentileza no trânsito gera gentileza.
  • As pessoas abrem a porta sem olhar se está vindo carro atrás.
  • As pessoas dão ré numa baliza sem olhar se está vindo carro atrás.
  • Apenas os imbecis fazem gracinha com carros de auto-escolas.
  • Os carros colam em sua traseira numa rampa.
  • Seta demais não engorda.
  • Abrir o vidro para pedir passagem sempre funciona.
  • Vidro com insufilm torna o trânsito hostil.
  • Há motoristas que vão numa boa atrás de seu carro que está a 40 por hora.
  • A rua não foi feita só para motoristas.
  • A rua é dos pedestres.
  • A rua é dos ciclistas.
  • A rua é dos motociclistas.
  • A rua é dos carrinhadores de mão.
  • A rua é dos motoristas.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

TOP 3 das inovações mercadológicas.

O mercado está muito pouco criativo para aumentar a lucratividade.

Aqui estão algumas listas TOP 3 de inovações que podem fazer explodir as vendas em alguns segmentos. Em breve, perto de você.

 

BELEZA – TOP 3:

3º lugar: lencinho de bumbum com cheiro de sabonete. Afinal, você não quer denunciar que não se lava depois de… bem, você sabe o quê.

2º lugar: protetor solar com ativo anti-celulite. Se resolver no quesito anti-celulite, usarão até em dia de chuva.

1º lugar: esmalte que descasca por inteiro. O verdadeiro prazer não está em experimentar novas cores, mas em tirar o esmalte numa puxada só.

 

DOMISSANITÁRIOS – TOP 3:

3º lugar: mata-mosquito sustentável, do tipo que faz o mosquito ressuscitar de manhã quando você já estiver fora de casa.

2º lugar: amaciante de roupa em pedra, assim fica mais difícil diluir com água.

1º lugar: aromatizador de ambiente com cheiro de vômito para acabar de vez com a vontade de beliscar um doce em casa.

 

LAZER – TOP 3:

3º lugar: rede anti-social. Ela agrupa todos os seus contatos e lhes envia a mensagem “vão tomar no…”

2º lugar: cinema-0D, que é só a sala escurinha para você ter pelo menos um lugar onde dormir em paz na cidade.

1º lugar: parques indoor. Aqui é Curitiba, como que ninguém pensou nisso ainda?

 

SERVIÇOS FINANCEIROS – TOP 3:

3º lugar: programa de fidelidade para transporte público em que os pontos podem ser trocados por mais um ônibus em circulação.

2º lugar: Serasa-do-bem, um serviço que põe seu nome no Serasa toda vez que pagar um dívida, assim você nunca mais fará outras.

1º lugar: seguro proteção pós-eleições, em que você ganha um novo candidato caso venha a ficar doente com aquele que foi eleito.

Brasil, um país de marketeiros. Ou não.

Discordo veementemente que, no Brasil, todo mundo seja técnico de futebol. Isso pela simples evidência de que metade desta população não dá a mínima para zonas de rebaixamento, se o time jogou com garra, com coração ou com cartolas.

Você até pode argumentar que são milhares as mulheres que gostam de futebol – minha metade não é perfeita, eu sei. Mas a metade masculina também não é, pois sabemos que está cheio de homem que não liga para futebol. Noves fora, continuo com razão de que no Brasil não somos todos técnicos de futebol.

No lugar, creio que todo brasileiro é marketeiro. Marketing tem muito a ver com a nossa índole. Na real, marketear está em nossa genética.

Veja bem; não foram os portugueses quem primeiro venderam uma terra povoada por mihões de autóctones como sendo “descoberta” por Cabral? E que gênio criativo não seria Pero Vaz para valorizar a descoberta escrevendo aos seus clientes que “em se plantando tudo dá”?

Outra prova inconteste de nossa genética marketeira está na independência do Brasil. Nossos antepassados entendiam tanto da profissão que fico até emocionada. Diante da hesitação de D. Pedro I em proclamar a independência, eles vieram com imagens sedutoras: “Lá, você é um mero regente; aqui, o Imperador.” Até eu cairia nessa.

Há tantos cases semelhantes neste país!

A gente faz muito marketing – ou barulho de tambor, como querem aqueles que ironizam nosso dom. Não fico chateada de forma alguma com eles: há muito marketing de superfície por aí. Aquele tipo de marketing que, quando revelado, mostra um produto ralo, raso, insípido e pobrinho.

Marketing mesmo precisa ter pesquisa de mercado, benchmarking, business plan, planejamento de mídia, pesquisas de satisfação e pós-vendas. Se não tiver nada disso, vira mesmo barulho de tambor – uma pena.

Olhando por este ponto de vista, já começo ficar triste.

Pesquisa de mercado, brasileiro não faz: há pelo menos três países por aí que poderiam competir conosco ao título de “país do futuro”.

Benchmarking também não faz: fui ao cinema neste feriado e me lembrei que Dilma não foi a primeira mulher na posição mais poderosa num país.

Business plan nunca fez. Sobre este item, não preciso tecer comentários.

Planejamento de mídia; bem, isto brasileiro faz? Respondo: não faz. Até pode dar a impressão de fazer, mas não faz. Para fazer propaganda de si, não há país que não tenha sido visitado, não há verba que não tenha sido estourada. A opção “todas as mídias com não importa que dinheiro” não é planejamento de mídia.

Pesquisas de satisfação brasileiro até faz, mas não leva a sério. A Ficha Limpa demorou a cair, a Belo Monte continua feia.

Finalmente, pós-vendas é que não faz é mesmo! Ou você sabe a quem reclamar?

Pois é, fiquei deprimida. Minha tese desmoronou: não somos marketeiros. Somos, no máximo, batuqueiros.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A questão carioca, curitibana e paulistana do bar da piscina.

Dizem que todo carioca é igual. Numa caricatura, estão sempre falando palavrão pra cara%$&, arrumando algum ischquema e prontos pra cair no samba, no samba, no sambá.

Quem fala isso de carioca nunca deve ter visto um curitibano de perto. Se viu, com certeza não cumprimentou. Se cumprimentou, indubitavelmente conversa não teve.

Pré-conceitos são um saco, mas servem para prever como as pessoas reagiriam frente a um problema.

Neste domingo de Carnaval, por exemplo, tivemos um problema no clube: fazia um solzaço sobre nossa cachola, a piscina estava lotada, não existia nenhum guarda-sol fechado, nenhuma cadeira desocupada e a criançada toda brincava no toboagua. Domingo perfeito de verão, exceto que o bar da piscina estava fechado.

De repente, ao meu lado, um sujeito teve uma típica reação carioca:

- Cara&¨% de clube! Cheio de regrasch pra sóciosch e deixa eschtesch carasch do bar folgarem na po##& do feriado de Carnaval! Presidente de mer&*, devia tá aqui cuidando e deve eschtar lá na praia coçando a po$%% do saco dele!

A questão toda com este sujeito não é que ele não podia comprar uma cerveja pra tomar na piscina. Ele podia; era só ir até a lanchonete do clube. A “questã” é que, para ir até lá, ele precisaria se vestir. Como não era permitido circular fora da piscina em trajes de banho, ele estava louco da vida de ter que vestir “shorts”, camiseta e chinelo pra comprar uma cerveja “que deveria eschtar sendo vendida ali no bar da piscina maisch não eschtá!”

Aqui é que os preconceitos ajudariam muito ao carioca. Se ele tivesse parado pra pensar, perceberia que, apesar dos inéditos 30 graus, estava em solo curitibano. Apesar de ser Carnaval, estava num clube curitibano. E apesar de estar na piscina, ele estava na piscina de um clube curitibano com mais de cem anos de história. Se o carioca tivesse captado tudo isso, não teria ficado aborrecido ao ponto de xingar o presidente do clube, sua mãe e a mãe da mãe dele.

Ele teria percebido que, em Curitiba, não se sai de maiô pra fora da piscina. Isto não é normal. Não é normal andar de chinelo em shopping. Não é normal colocar bermuda pra sair à noite. Não é normal esperar no ponto de ônibus sem camisa. Não é normal ficar só de sunga por aí. Será que ele não entendeu por que o oil man virou uma celebridade local?

No final das contas, o funcionário do bar da piscina apareceu. Já era bem pra mais do horário do almoço, mas apareceu. O carioca pôde tomar sua cerveja e o curitibano não precisou encarar sua sunga.

Agora, você me pergunta, a mim, o que eu achei de toda esta história?

Olha, meu; eu penso que ali havia uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Se eu fosse o dono da lanchonete já implantava um sistema de delivery na piscina. Se eu fosse o presidente do clube já deixava sempre uns roupões à venda nos vestiários. E se eu fosse um investidor já tentaria pegar o ponto do bar da piscina pra mim.

Você sabe, pauli$tano é tudo igual..

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Uma história nojenta.

Quando Felipe-Augusto abriu uma das janelas de seu palácio novinho em folha – o Louvre –, o que ele sentiu não lhe agradou. Não lhe agradou nem um pouco: Paris fedia. Por causa desta cheirada, resolveu que a cidade receberia esgotos e que matadouros e peixarias deveriam ser realocados para um local mais afastado – Les Halles. Imagina-se também que ele deva ter proibido a abertura daquela janela por tempo indeterminado.

Pelos idos dos séculos XII e XIII, monarcas precisavam de medidas de fôlego para controlar coisas horripilantes como peste bubônica, cólera, difteria. Não devia ser fácil incutir aos franceses bons hábitos de higiene – jogar seus excrementos em qualquer outro lugar que não a rua, por exemplo – se todos imaginavam que lavar as mãos e tomar banho é que os matavam.

Nunca foi mentira que em Paris a gente comum não se banhava: eles não tinham acesso à água. Enquanto do outro lado do mediterrâneo os árabes já tinham inventado bombas d´água, o parisiense que quisesse tomar banho deveria ter dinheiro suficiente ou para morar no andar térreo ou para fazer subir e descer uma banheira cheia por alguns lances de escada até seu quarto.

Já a gente incomum, se não tomava banho, é porque tinha suas predileções. Napoleão rende uma história bem famosa de que, voltando a Paris, mandava dizer a sua Josefina que não tomasse banho. De certa forma, parece sensato que seu desterro tenha sido numa ilha.

À parte as preferências de Napoleão, foi por causa da maioria, desde Felipe, sentir muito nojo do fedor na cidade que boas coisas se desenvolveram por lá, a exemplo do primeiro sabonete líquido e de toda a indústria da perfumaria. Paris dá a medida do quanto o nojo pode ser um propulsor do desenvolvimento econômico.

Em Curitiba mesmo há fatos que comprovam a teoria.

Coisa de cinco anos atrás, podia-se ir a qualquer café ou lanchonete na cidade que limpar as mãos com guardanapos de papel era bastante fácil. Quando a mostarda escorria pelo punho ou no canto da boca, esticava-se o braço e apanhava-se um guardanapo bem no centro da mesa. Este era uma hábito simples, como devia ser simples, aos franceses medievais, levantar ou abaixar suas vestimentas – conforme fossem mulher ou homem – para se aliviar na calçada.

Então eis um oficial da vigilância sanitária curitibana que, vendo alguém puxar uma folha do porta-guardanapos, sente-se augustamente enojado. Ele nota, com repugnânica determinada, que a pessoa não tinha tocado apenas em uma, mas em pelo menos duas folhas antes de puxar a que efetivamente usaria para se limpar.

Neste exato momento, munindo-se da tradição milenar de que aquele que governa pode, o oficial decide que todo guardanapo em Curitiba deve vir encapado, seja em plástico, seja em papel. Foi uma decisão que abalou a vida das pessoas: nunca mais puderam limpar as mãos com facilidade. Uns não conseguiam rasgar os saquinhos plásticos; outros conseguiam à custa de se sujar mais ainda. Visionários ficaram irremediavelmente inconformados. “Será que ninguém nota quanto lixo extra se produz encapando os guardanapos?!”, pixaram nos muros da cidade. Houve por fim aqueles que resolveram solenemente protestar limpando as mãos na própria toalha da mesa.

Apesar das queixas, o hábito foi adotado por toda a cidade. Ao cabo, os cidadãos estavam conformados de que os guardanapos encapados eram muito mais higiênicos. Graças a sua medida, o tal oficial foi homenageado por ter melhorado as condições da saúde pública, sendo igualmente festejado por ter dado um impulso econômico ao setor do plástico na cidade.

Daqui dezenas de anos, quando Curitiba for celebrada como a cidade mais higiênica do país, historiadores poderão dizer – tal como disseram a respeito da construção da fulgural Paris – que tudo começou de uma forma bem nojenta.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O Zen de Encapar.

Todo mundo é unânime em dizer que trabalho manual dá paz. Das artes milenares da ikebana e origami às mais modernas do tricô e crochê, elas provam que o ditado deveria ser mudado para “quem mexe com a mãos, os males espanta do coração.”

De minha parte, NOT. Não há nada que seja manual – exceto escrever à mão numa imaculada folha branca – que me deixe zen. Há pessoas que levam jeito. Não me incluo no rol.

Jardinagem? Não, não é comigo. É só pegar uma mangueira para aguar o jardim que fico mais enrolada que ela.

Costurar? Também não. Sabe aquela coisa necessária de passar o fio pela agulha? Comigo dá nó.

Pintura? Vixi, piorou. Se dependesse de mim, a Suvinil ficaria no vermelho.

Amassar pão? Até vai, mas não espere engrandecimento meu nesta área tampouco.

Daí me aparece na lista de material escolar um aviso: “Os livros de caligrafia e inglês devem vir encapados. Os demais já possuem capas plásticas.”

Lascou-se!

Quando eu era pequena, ficava pasma de ver minha mãe encapando não um, mas uma dezena de livros nossos. Encapava também cadernos, não importa se fossem espiralados ou costurados. Uma verdadeira mestra no ofício. Minha mãe era tão boa na arte zen de encapar que conseguia fazê-lo até com aquele troço grudento, lazarento que se chama “contact”, sabe?

Se alguém consegue encapar um livro com contact é ninja. Definitivamente ninja.

Eu me armei de durex e plásticos transparentes. Eram apenas seis míseros livros.

O desastre começou logo no início, porque não consegui destacar o adesivo que amarrava o rolo plástico. Acabei cortando o adesivo e um pedaço do plástico junto. Apesar do fracasso inicial, dei-me uma desculpa: “Também, quem é o filho da mãe do gerente de marketing que descobriu que vende mais plástico fazendo com que o cliente corte metade dele só de abri-lo?!”

Passado o teste de abrir o rolo, envolvi o primeiro livro no plástico e notei – ah, sim! que sensação gostosa o plástico lisinho sob minhas mãos. Quase tive um êxtase e entendi que a gente realmente pode alcançar o zen nas coisas do dia-a-dia. Vai ver foi isso que estimulou minha mãe a encapar nossos livros por tantos anos letivos.

Êxtase fugaz, no entanto: fui cortar o plástico e não cortei reto. Fui puxar o durex e ele enrolou no meu dedo. Fui pregar o durex num lado da capa e encurtei o plástico no outro. Fui dobrar uma ponta e ela escapou.

Depois dos rounds regulamentares, venci: estavam os seis livros encapadíssimos. Passei a mão sobre eles e tive aquela sensação prazerosa das capas lisinhas. Um frêmito zen percorreu minha espinha.

Quando entreguei os livros aos meninos, eles me disseram: “Ah, mãe, não queria que encapasse.”

Bá pros dois!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Como apelidar em Curitiba.

Nos anos 90, a Unicamp era um cadinho linguístico. Numa aula em particular de fonética, tivemos a oportunidade de comparar algumas diferenças de sotaque in loco. Como havia alunos do nordeste ao sul em nossa sala, apenas a apreensão de um simples “a” rendeu inúmeras variantes.

Deve ter sido bem nesta época que me apaixonei por Linguística e abandonei amigos e melhores amigos de Letras para trilhar a aridez da ciência da linguagem. Nunca mais ouvi nada com os mesmos ouvidos.

É assim que, vindo morar em Curitiba apenas um ano depois de formada, notei um modus linguisticus local de apelidar as pessoas a partir do nome próprio. A coisa toda é muito engraçada para um ouvido “alhures”, sobretudo paulista como o meu.

Começou numa empresa em que trabalhei. A secretária se chamava Fernanda. Depois de algumas festas de confraternização, esta suprema representante do Diretor já estava íntima dos subordinados dele e então passamos a nos tratar comumente pelas iniciais de nossos nomes: ela era a Fê, eu era a Má. No mesmo departamento, ainda havia a Dri e o Má

Era assim que nos chamávamos. Tudo muito usual e comum no variante brasileiro.

Estranho foi quando notei como se escreviam estes apelidos. Num email vindo da Fernanda, não se lia na assinatura o esperado Fê, porém Fer. A Dri era Adri. Má era Mar. Mas este Má não dizia respeito a mim: eu era May.

Então apurei os tímpanos, porque se estavam escrevendo Fer, Adri, Mar e May estas pessoas não poderiam estar pronunciando Fê, Dri, Má e Má para se referir a mesma coisa.

E não estavam mesmo. Meu ouvido seletivo não percebeu toda a fonética daqueles apelidos. As pessoas falavam de fato Fer, com o erre no final; Adri, com o a átono no início; Mar com erre mesmo e – salve-me Saussure! –, May com um izinho no fim.

Pela primeira vez como bacharel em linguística eu via o fenômeno da hipercorreção dar o ar da graça em uma situação totalmente inédita para mim.

Se o nome se escreve Fernanda, reduzi-lo à primeira sílaba resulta em Fer e será com este “erre” no final que a dita cuja será chamada a partir de então. Se o fulano se chama Marcelo, seu apelido deverá ser Mar, ora bolas! Dri, para um nome que é Adriana, não pode funcionar. Pela lógica da hipercorreção, Adri é mais adequado.

De todos os exemplos que comecei a coletar, o mais surpreendente foi mesmo o que aconteceu com o meu nome. Depois de passar vinte anos da vida sendo chamada de Má - e por vezes acreditar que de fato o fosse -, Curitiba me resgatou para o May.

Não importa que meu “y” seja tônico: rebatizaram-me ditonga crescente. Seja porque seguiram a lógica de hipercorrigir pela escrita, seja porque olharam para meu sorriso e o acharam mais doce que vil, virei May.

Em todo o Brasil sou Má. Mas em Curitiba, esta gentil terra de apelidantes excêntricos, sou May.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Sinfonia do supermercado em movimentos múltiplos.

Já se vão bem uns 16 anos quando eu sentava numa das carteiras da ESPM em Sampa e meu professor de “database marketing” enchia a boca para falar sobre as maravilhas que a internet faria às nossas vidas. A gente, que mal usava email e celular naqueles tempos, ficava realmente embasbacada com as possibilidades. Uma delas – a mais genial de todas – era fazer supermercado sem precisar sair de casa.

Por que deveríamos fazer supermercado sem sair de casa? Ora, vou lhe explicar:

1º Movimento:

Com o carrinho nas mãos, você tira o produto da prateleira e o coloca dentro do carrinho.

2º Movimento:

Na fila do caixa, você tira o produto do carrinho e o coloca em cima da esteira do caixa.

3º Movimento:

Na outra ponta da esteira, você tira o produto de cima dela e o coloca dentro do carrinho.

4º Movimento:

Já no estacionamento do supermercado, você tira o produto do carrinho de compras e o coloca dentro do porta-malas.

5º Movimento:

Em sua casa, você tira o produto de dentro do porta-malas e o coloca em cima da mesa da sala, da cozinha ou mesmo no chão.

6º Movimento:

Em frente à despensa, você tira o produto de cima da mesa e o guarda, finalmente, na prateleira do armário.

Para fazer toda a sinfonia do supermercado, multiplique estes seis movimentos básicos pelo número de produtos que você adquire a cada vez.

Sacou a genialidade de fazer a coisa inteira pela internet? O embasbacamento dura até hoje... Com toda a internet que temos, a experiência de fazer supermercado é offline mesmo e só tem de super o quanto exercitamos nossos braços para cima e para baixo.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Não questione um vegetariano, aliás.

Não questione um vegetariano convicto a respeito de sua opção alimentar caso queira apenas provocá-lo: você poderá ouvir na mesma moeda, já que sempre haverá respostas estúpidas para entrelinhas idiotas.

Veja: perguntaram-me com aquela cara plácida “será que seus filhos serão vegetarianos daqui uns anos?”

Para esta pergunta, que na boca de uns é sincera e na boca de todos os demais é sarcástica, há quatro possibilidades de respostas:

A resposta que eu daria àqueles que amorosamente me questionassem - resposta bastante polida, aliás, é:

- Espero que o vegetarianismo seja um valor que eu tenha conseguido passar aos meus filhos, da mesma forma que pais e mães conseguem passar aos seus filhos os de não roubar e não matar.

A resposta que eu daria àqueles que me perguntam já tendo a réplica na ponta da língua, achando que são os primeiros a me confrontar sobre educação de filhos - uma resposta bem psicologizante, aliás, é:

- Espero que o vegetarianismo seja um valor que eu tenha conseguido passar aos meus filhos. É claro que, na adolescência, para se rebelarem e poderem se afirmar, eles possam querer comer carne. Mas sempre haverá a possibilidade deles retomarem o vegetarianismo quando esta fase passar, você sabe.

A resposta que eu daria àqueles que têm a tréplica na ponta da língua - resposta já um pouco cínica, aliás, é:

- Olhe, meu filho será vegetariano até quando ganhar idade para mentir a respeito do que come na rua.

Agora, a resposta que eu daria àqueles que não esperam ouvi-la, aliás, é:

- Olhe, meu filho será vegetariano até quando ganhar idade para mentir a respeito do que come na rua, que deve ser a mesma idade que seu filho terá quando lhe contar o que vai estudar na casa do amigo.

Certa vez, uma colega me perguntou, horrorizada, se eu não me sentiria culpada de não ter dado carne aos meus filhos quando eles tiverem idade para me questionar a respeito. Quase fazendo um gesto magnânimo, operístico, tive de lhe responder:

- Eu prefiro que eles me acusem de não ter lhes dado carne – porque comer carne é algo que eles sempre poderão escolher por conta própria depois de adultos – a que eles me acusem de não terem tido a chance de nunca comer carne na vida.

Portanto, não questione. Aliás, dica: ficar enchendo o saco de vegetariano sobre por que ele não come carne é tão inútil quanto discutir religião, política ou futebol.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Sinfonia da cama em 12 movimentos.

No final de semana, meu marido me ajuda a arrumar a cama. É a ajuda mais bem vinda que recebo, ainda mais valorosa que lavar louça, tirar a mesa ou dar banho nas crianças. Já calculei: pra arrumar uma cama queen size, dependendo do nível de neurose que você tenha, é necessário circular à direita e à esquerda dela no mínimo doze vezes. Conte comigo:

No 1º movimento:

- Você retira os travesseiros da cama, retira sobrelençol e cobertores. Deixa a cama só no lençolzinho que você amarrota todos os dias. Daí você estica este lençolzinho.

No 2º movimento:

- Você vai pro outro lado da cama e estica o outro lado dele. Nesta de esticar um lado e depois o outro, você vai da cabeceira aos pés da cama apenas uma vez, mas se o elástico do lençol estiver frouxo, pode ser que ele escape numa puxada mais forte e daí, meu caro, você terá que fazer movimentos suplementares para enfiar o lado fujitivo pra debaixo do colchão.

No 3º movimento:

- No lado da cama em que parou, você pega o sobrelençol e o estende com aquele movimento grandioso que define a diferença entre você, um reles dorminhoco, e as camareiras de hotéis cinco estrelas, que conseguem fazer um lençol com 4 m2 cair centralizadinho no colchão. Como você é um reles dorminhoco, neste 3º movimento você alcança apenas ajeitar um dos lados do sobrelençol. Então…

No 4º movimento:

- Você anda pro outro lado da cama e acerta o restante do sobrelençol. É muito frequente, aqui, a sinfonia desandar. Motivos possíveis: pode ser que seu marido costume puxar o lençol pra ele. Então, pra minimizar os efeitos nocivos de dormir descoberta, você corre pro outro lado da cama e calcula deixar mais barra de sobrelençol pro seu lado. Outro possível motivo de desande, como disse acima, é o grau de sua neurose: se você gosta de cama arrumada como em vitrine de loja, poderá notar que o lado direito ficou mais comprido que o esquerdo e daí vai contar mais uns dois ou três movimentos até deixar tudo impecável.

No 5º movimento:

- Você vai colocar o cobertor por cima do sobrelençol. Mesmo gesto grandioso, mesma constatação que você jamais poderia ganhar a vida como camareira de hotel e finalmente o cobertor está quase arrumado sobre sua cama.

No 6º movimento:

- Você vai até o outro lado da cama e termina de esticar o cobertor. Aqui, todos os incidentes que ocorreram ao sobrelençol podem ocorrer ao cobertor. Cuidado, porém! Como o cobertor se move por cima do sobrelençol, poderá desarrumar este que está por baixo. Se isto ocorrer - bau-bau - sua sinfonia estará perdida, já que será necessário repetir tudo desde o movimento 3 – uma desolação.

No 7º movimento:

- Você pega a ponta do sobrelençol que sobrou na cabeceira e a vira por cima do cobertor. Tomara Deus que a marcação da dobra do viralençol tenha se ajustado corretamente à altura em que você deixou seu cobertor, senão você estará ferrado pra arrumar tudo de volta.

No 8º movimento:

- Você vai pro outro lado da cama e vira a outra ponta do sobrelençol por cima do cobertor. Frequentemente, um lado sai lindo-maravilhoso e, o outro, uma caca. Aqui você pode escolher duas opções: ocultar a caca jogando uma manta ou travesseiros por cima ou neurotizar de vez e repetir os movimentos desde o número 5 (se você for bom!) ou desde o número 3 (se você for desastroso no ato de retirar o cobertor de cima do sobrelençol). Sugestão: treine tirar uma toalha da mesa com a louça em cima. Se a louça não cair, você é um mestre e nunca mais fará um cobertor interferir na vida de um sobrelençol já esticado.

No 9º movimento:

- Você coloca os travessereiros de um lado da cama.

No 10º movimento:

- Você coloca os travesseiros do outro lado da cama.

“Mayra, aparte!”, você me interrompe. Respondo eu:

- Sim? – Ao que você:

“Eu coloco os travesseiros todos por um lado só.” E eu:

- Ah, seu safadinho, já aperfeiçoou a sua técnica, hein?!

No 11º movimento:

- Você vai até um lado dos pés da cama e enfia o excesso de cobertor que se arrasta no chão pra debaixo do colchão.

No 12º movimento:

- Você vai até o outro lado dos pés da cama e enfia aquele excesso também.

No 13º movimento… Ah, que bom, ele não existe:

Você está livre desta chateação de arrumar a cama. Pode se jogar em cima dela e, assim, já deixar armado o espetáculo pro dia seguinte.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Não critique, leia.

Chega esta época do ano e começa aquele monte de críticas contra um certo programa de televisão. Até um aplicativo para manter menções a este programa fora de nossos perfis em redes sociais apareceu.

De repente, o Big Brother Brasil passa a ser aquele-programa-que-não-deve-ser-nomeado. Coitado, até suas siglas o denunciam.

De minha parte, acho a coisa mais hipócrita ficar criticando o Big Brother. A primeira crítica é que o programa seria todo armado, cheio de esquemas para fazer vencer aquele candidato que a Globo quer tornar sua nova vaca leiteira. Mas quantos destes participantes realmente fizeram carreira artística na Globo depois? Malhação é um programa mais barato e muito mais eficaz para lançar new faces que o BBB. Então, use a lógica e dispense esta crítica.

Aliás, usei acima a expressão “vaca leiteira” porque ela vem do marketing. Não estou querendo criticar nas entrelinhas as moçoilas que aparecem no BBB. Todo mundo mete bronca no programa porque ele só faz é render capa de Playboy e VIP. No entanto, convenhamos: se a ideia é produzir um reality show só para vender revista de mulher pelada, estratégia cara esta, não? Os pânicos e os caldeirões da vida já dão conta de lançá-las no mercado todos os anos, aos montes, e de graça. A Playboy não precisa de um BBB para lucrar alto. Ela precisa que haja homens, compreende?

Também criticam o programa porque ele emburrece. Ah, esta crítica é que me deixa mais pasma. Emburrece? Então o que faz o futebol de toda quarta e todo santo domingo? Acaso enaltece? Não começou com um jogador de futebol a fama do Michel Teló? Por favor! Que programa de TV realmente enobrece? Aquela porcaria do CQC que conseguiu apenas produzir nerds que se acham engraçados falando mal de mulheres? Ou então os jornais televisivos que descobrem uma fraude em postos de gasolina sobre a qual o INMETRO já tinha conhecimento desde 2010? Que programa, realmente, melhora nossa inteligência?

TV é entretenimento. Se TV fosse sala de aula, ela se chamaria TV Senado ou TV Câmara, mas nenhuma das duas dá ibope no país.

O que este povo cabeça que critica o BBB está vendo? Canal pago? O que é cabeça suficiente para ser assistido neste país? Saia Justa? Diário do Olivier? Super Nanny? Caçador de Relíquias? Game Of Thrones? Roda VIva? Jornal das 10? As transmissões ao vivo do Rock in Rio?

Sinceramente! Quem critica muito o BBB deveria olhar para suas próprias escolhas. Não é este reality show que deve ser criticado, mas toda a indústria televisiva. Se quiser realmente fazer um boicote à programação, desligue a TV e leia. Vá ler. Daí, talvez, você fique informado sobre o projeto de lei que este governo quer aprovar obrigando que metade da programação de TV a cabo no Brasil seja nacional. Já pensou se isto começa a valer? Aí, sim, meu amigo e amiga azedos, o BBB será um oásis na programação, pode apostar.