quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sobre a doce arte de ganhar dinheiro.

Meu bairro se transformou no novo destino gastrômico de Curitiba. Socado entre a rudeza do estádio do Coritiba, a imponência do Museu Oscar Niemeyer, a barulheira do trilho do trem e a fortificação do Presídio do Ahu, o Juvevê era apenas um bairro de passagem. Servia àqueles moradores mais antigos do tempo em que Curitiba pertencia apenas aos curitibanos de nascença.

Foi quando a Prefeitura resolveu que o presídio viraria o novo centro judiciário da cidade, que os vagões da ALL teriam que contornar a cidade, que o estádio sediaria jogos da Copa e que o Centro Cívico se estenderia num calçadão até o Museu. Daí todo mundo começou a olhar diferente para o Juvevê,vendo seu potencial como bairro para se ganhar dinheiro. Aquele povo todo circulando por suas ruas sem saída não teriam outra saída a não ser almoçar, lanchar e baladar por ali mesmo, pois o trânsito para fora de seus limites se tornaria insuportável.

Nada do que a Prefeitura aventou fazer, feito fez-se. Mas os investidores vieram, abrindo bares, restaurantes e cafés.

Fui conhecer um novo membro deste circuito gastronômico semanas atrás. Trata-se de uma casa de cupcakes, aqueles míni bolos super calóricos que são assados em forminhas circulares altas envoltos em papel.

O local estava vazio, denunciando que tinha sifo inaugurado há menos de uma semana. Cheguei por volta das 15 horas, sentei com uma amiga e pedimos um café e um cupcake. Fomos atendidas pela dona, como dá de acontecer quando o estabelecimento ainda precisa se firmar.

Alguém falou em se firmar?

Dali uma hora, não havia mais espaço algum no salão. Todas as mesas estavam ocupadas e meu café vinha frio porque a dona não estava mais dando conta de atender tantas distintas freguesas. Junte Juvevê, café expresso, chocolate e quatro horas da tarde e você tem a receita para se ganhar dinheiro.

Fiquei olhando o movimento e fazendo contas na minha cabeça, quanto a dona estava faturando… Voltamos eu e minha amiga cada uma para seu respectivo negócio. Na volta, passamos em frente a uma outra casa de cupcakes, esta bem menor e para a qual os propretários se davam ao luxo de trabalhar apenas após o meio-dia e nunca aos finais de semana. Nesta hora ela estava aberta, mas tínhamos apostado que fecharia há quase dois anos atrás.

Despedimo-nos só com um aceno de cabeça. Diante das evidências, coube-nos apenas um no comments silencioso e empanturrado de cupcakes.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Redenção do Pipoqueiro

Há momentos na vida em que você resolve encarar de frente sua inabilidade para ganhar dinheiro. É quando pagar a escola dos filhos impede que você viaje para o réveillon na praia e quando o IPVA derruba suas intenções de trocar o computador.

Inscrevi-me num destes seminários punk-rock-hard-core-heavy-metal de desenvolvimento de habilidades empreendedoras, destes que o arrasam primeiro para o reerguerem depois. Estava pronta para fazer uma reengenharia nos meus processos mentais, aprender estabelecer metas e cumpri-las. Estava decidida a tomar as rédeas de meu futuro promissor endinheirado.

O seminário foi pauleira mesmo. A gente não dormia direito, não comia direito, mal tinha tempo para fazer xixi. De cara, aprendi que empreendedor, para ser rico, tem mesmo que passar fome, frio e sono desde a faculdade e durante a minha fiz exatamente o contrário de tudo isso: frequentava festas, faltava às aulas matinais para dormir até mais tarde e cedo abandonei o bandejão para comer melhor e mais caro na cantina. Notei quanto dinheiro vinha gastando com meu conforto desde então.

Passados seis dias de penosas provas, obtive o certificado do curso, ganhei dois dos três prêmios distribuídos aos participantes e me considerei pronta para remodelar meu negócio de acordo com metas assaz estimulantes.

Foi quando me enviaram um “you tube” da Pipoca do Valdir. No video, este microempreendedor do ramo alimentício mostrava como tornava seu carrinho de pipocas o melhor de Curitiba. Todas as lições pelas quais paguei uma fortuna para aprender no seminário estavam lá, postas em prática, e com louvor:

- O aprimoramento constante da qualidade do produto: Valdir tinha resolvido fritar o milho em óleo de girassol para agregar menos colesterol ao seu cliente;

- O fator “a mais” no atendimento a clientes: Valdir oferecia aos clientes álcool gel antes de lhes entregar a pipoca e a entregava junto com um kit higiene contendo guardanapo, palito de dente embalado e bala de hortelã;

- O foco no core business e na meta: Valdir vendia apenas pipoca no seu carrinho e nada mais; em compensação, queria ser a melhor pipoca da cidade;

- O cuidado com a marca: Valdir investia forte na limpeza e higiene de seu carrinho, que brilhava de tão limpo, e ainda tinha um jaleco branco impecável para cada dia da semana.

Diante de tão assintosa prova de que novamente eu tinha gastado dinheiro para aprender o que muitos já sabiam, tive que conferir in loco aquela proeza do gênio empreendedor. Fui até a Praça Tiradentes comer a pipoca do Valdir. O que esperava? Secretamente, que tudo aquilo mostrado no You Tube houvesse sido maquiado, que a propaganda fosse enganosa.

Mas a prova dos nove deu vitória ao Valdir. Sua barraca era mesmo impecável, o kit higiene realmente foi entregue, o álcool gel de fato estava à disposição e sua ajudante estava usando o jaleco da terça e não da segunda-feira.

Mas um empreendedor, por mais bem preparado que esteja, nunca estará inteiramente preparado para uma cliente vegetariana ecochata como eu. Eu queria comer pipoca salgada, mas ela estava salpicada de bacon. “Arrá!”, pensei. Como Valdir não estava trabalhando naquele dia, virei para sua ajudante e disse: “Olha, eu tenho uma sugestão a fazer: que vocês não coloquem bacon na pipoca, senão os vegetarianos não podem comer.” A ajudante apenas me olhou e disse: “A pipoca doce você pode.”

Comprei a pipoca doce. Não queria; queria a salgada. Mas eu tinha que comprar alguma para testar o atendimento pós-venda. Saí de lá contrafeita, porque não comi a salgada, porém satisfeita, porque o Valdir não era, afinal, visionário. O mercado vegetariano cresce e ninguém mais pode deixar de atendê-lo.

Passados 365 dias, topei com o carrinho do Valdir de novo. Eu estava com fome, não tinha almoçado e resolvi despejar nele meu desgosto por não encontrar nada vegetariano para comer naquele centro da cidade. A visão do público vegetariano ainda está muito distante do radar dos donos de padarias, lancherias e botecarias.

Falei diretamente ao Valdir, notando o capricho irretocável de seu carrinho e uniforme, como naquela primeira vez: “Ah, Valdir, eu queria comer a pipoca salgada, mas não como bacon.” Mal eu tinha terminado a frase e ele abriu um sorriso: “Mas eu faço na agora para você! Demora só um minuto. Tem muita gente que não come bacon, é só falar que faço na hora mesmo!”

Saí da barraca com minha pipoca salgada , meu kit higiene contendo bala de hortelã e guardanapo e agora, ao invés de palito de dente, fio dental embaladinho. Fiquei arrasada: depois de um ano, eu ainda não tinha ideia de metas para minha vida e o Valdir ali estava redimido, entregando-me pipoca quentinha quando tudo o que eu queria era apenas a pipoca sem bacon.

***

Assista aqui ao you tube da Pipoca do Valdir. Sou fã!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Regojizos busísticos

Dizem que brasileiro lê pouco. Dizem que francês lê muito. Retrato fiel desta constatação é que, nos metrôs parisienses, apertadas entre sobretudos e bolsas, surgem dezenas de mãos segurando livros cuja leitura se inicia e se completa exclusivamente de uma estação a outra.

No Brasil, tal cena já é bem mais rara. Primeiramente, porque faltariam metrôs para que ela se repetisse fidedignamente. Segundo, porque brasileiro carrega, quando vai trabalhar, um kit-trânsito que não dá espaço para nenhum item literário.

Sabendo a que horas sai de casa, mas nunca sabendo quando chega, ao passageiro destes bondões brasílicos resta se precaver contra atrasos causados por enchentes, alagamentos, quedas de barreira, aberturas de crateras e toda sorte de infortúnios causados por intempéries. Isso quando não precisa se preparar para eventuais arrastões, sequestros de ônibus, barreiras incendiárias, bloqueios de túneis e trincheiras.

Na sacola do passageiro-vale-transporte é mais importante colocar escova de dente, pente para cabelo, desodorante, sabonete, muda de roupa, casaco de frio, guarda-chuva, água e lanchinho, remédio para dor de cabeça, lenços de papel, papel higiênico, lixa de unha, absorvente íntimo, lenço umedecido que qualquer livro. Vai assim que, se sobrar algum espaço na bolsa, o brasileiro prefere preenchê-lo com o carregador de celular. Pior que ficar sem poder chegar em casa é ficar sem poder dar notícias.

Logo, dizer que francês lê tanto que lê até no metrô é desconhecer o aperto da bolsa de nossos leitores quando andam de busu.

Mas há exceções regojizantes.

Dia destes, eu tinha pegado um ônibus para ir a minha livraria preferida em Curitiba, a Mahatma. Saí de lá com três volumes, levados a duras penas dentro de uma sacola que segurava no outro braço, já que o direito fica sempre encarregado de minha bolsa e seus inúmeros apetrechos.

Eu queria começar a ler um dos livros que tinha comprado ali mesmo no ponto, em tal ansiedade estava para saber o destino da loja que, na Paris atual, herdava o nome da mítica Shakespeare & Co. do entreguerras. Figuras literárias como James Joyce, Sylvia Beach, Hemingway e Gertrude Stein ecoavam em meus pensamentos e eu queria estar imersa num mundo em que todos lessem e discutissem literatura com o mesmo ardor com que discutem sobre suas doenças e remédios.

Mas a imagem das pessoas que esperavam no ponto comigo era o contrário de uma roda literária: pessoas com as bochechas vermelhas, esbaforindo sob o sol da tarde, carregando sacolinhas de supermercado pesadas e cheias de tudo, apertadas em calças jeans esmaecidas, vestindo uma camiseta suada por dentro de cuja gola passavam os fios do fone de ouvido do celular. Pessoas preocupadas com o crediário, com a fila do SUS, com o tratamento dos dentes do filho.

Foi quando passei pela catraca cumprimentando o cobrador e notei que ele lia. Sim, ele lia. Olhou-me rapidamente, apenas verificando como eu pagaria a passagem, e voltou seus olhos para o livro. Nas outras paradas, ele agia sempre com a mesma presteza em atender o passageiro que entrava para voltar imediatamente à leitura de seu livro.

Fiquei embevecida. Eu nunca tinha visto um cobrador lendo. Aquilo era um sinal de que eu, amante de livros, não estava afinal sozinha nos busus da vida. Quase saquei o livro da minha sacola e lhe dei, para que ele soubesse que houve em Paris pessoas que tornavam suas vidas mais belas por meio da literatura. Entretanto, contive-me: ele poderia estar lendo algo para prestar concurso e isto cairia como um balde de água fria.

Na bolsa do brasileiro sempre haverá espaço para algo que lhe acene com um trabalho mais bem remunerado.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Aflições busísticas

No linguajar dos pobres coitados que não dirigem, há vários apelidos carinhosos para ônibus: “bondão”, que acham popular, mas que eu considero culto, porque mostra que o sujeito sabe que seu antecessor na história da cidade eram os bondinhos elétricos; “busu”, outra alcunha cultíssima, que remete ao anglo-saxônico bus; e aqueles que são locais, como nestas vias de Curitiba, onde nunca pegamos simplesmente um ônibus, mas sim o “vermelhão”, “o verdão”, o “ligeirinho”, o “ligeirão” e, mais recentemente, o “Avatar”, conhecido à boca miúda como “Viagrão”, dada sua cor azul e ao fato dele levar todo homem honesto rapidamente ao trabalho.

Dos apelidos que mais gosto, consta o busu. Mas não o uso assim, em qualquer circunstância. Em dias normais, quando a espera por um ônibus está nos atrasos regulamentares, ou quando ele está bem cheio, ou quando todas as janelas estão fechadas e o povo tossindo, pego simplesmente um ônibus para vir para casa.

Pegar um busu é só para quando o troço sai realmente do convencional. Como um dia destes:

Saca assim uma praça bem entupida de gente, trânsito, barraquinha de pipoca e transeuntes no centrão-nervoso? Esta praça aqui na minha cidade se chama Tiradentes. Pois chovia, e eu estava andando pela Tiradentes em direção ao ponto do meu ônibus. Guarda-chuva na mão, bolsa a tiracolo na outra e a sapatilha encharcada fazendo aquele barulhinho xóqui-xóqui quando eu pisava. Olhei de longe e não acreditei na minha sorte: meu ônibus já estava lá, prontinho, de porta aberta, esperando para eu entrar.

Pisei no primeiro degrau fechando desajeitadamente o guarda-chuva. Cumprimentei o motorista – que sou gentil, oras! –, saquei do cartão-transporte, passei pela catraca e vi que o fundo estava vazio. Puxa, que sorte mesmo! Pegar ônibus com o fundo vazio em dia de chuva não é para qualquer um, não, meu irmão!

Passei por um, passei por outro, ultrapassei os limites da primeira porta de saída e… estanquei: no corredor, impedindo completamente a passagem da mais magrela das pessoas, havia dois distintos trabalhadores segurando por alças dois imensos volumes bem dispostos no chão: um deles, pelo que calculei, de uns 50cm por 40cm por 100cm. O outro volume mais baixinho, porém mais largo. Ou seja: alguns vários milímetros cúbicos assintosamente estacionados no corredor. Estava bem explicado, visilmente demonstrado porque o fundo do ônibus estava vazio.

Mas eu ainda não tinha perdido a esperança de me acomodar mais folgada naquele trajeto até minha casa. Dei meia-voltinha e fui buscar espaço nos degraus da escada da primeira porta. Não é lá muito seguro, mas era longe o suficiente das roupas molhadas, das janelas enlameadas de hálito quente. É neste momento do relato que meu ônibus conquistou o mérito de ser chamado “busu”.

Enfiada nos degraus da porta estava uma menina segurando inacreditável meia-dúzia de bexigas. Cheias!, tá me entendendo? Cheiazinhas-da-silva. Desisti de fazer qualquer movimento. Fiquei ali mesmo, imóvel, a contragosto, segurando arduamente um cano gelado muito acima de mim até ficar óbvio à moça festeira que ela teria que descer com seus balões para que eu saísse do busu.

Cheguei em casa estupefata: que se queira fazer compras na cidade e carregá-las no busu, tudo bem. Que se queira economizar o táxi em dia de chuva, melhor ainda. Mas que se queira levar bexigas cheias para casa de busu, ah, isto era o fim do mundo! Por pouco não fomos todos para a casa dela também, animar a festa fazendo um cachezinho como palhaços.