Estávamos no Banco da França. Eu não era ninguém, ele era Balzac. Não tinha sido um acaso. Quão poucas coisas podemos reputar ao fortuito! Literatura é ficção científica: eu havia retrocedido anos nos séculos, ele avançado outros tantos, e, portanto, estávamos juntos ante aquela instituição.
- Vim saldar sua dívida, Balzac!, falei.
- Mas por quê?, ele perguntou. Após tantos séculos, será que tinha perdido, afinal, o despudor de emprestar dinheiro? Respondi-lhe que o fazia porque ele precisava ser quem gostaria de ter sido, um homem rico.
Nesse momento, notei um sujeito mais baixo entrando pela porta ao nosso lado. Correu para dentro. Segui-o com o olhar. Reconheci-o antes que fosse cumprimentado pelo gerente. Era Flaubert, o pai. Intuí que tinha vindo sacar de sua poupança, de letras que rendiam tantos juros. Tomei o cotovelo de Balzac, apontando-lhe a porta:
- Entremos, e o dirigi para dentro.
Foi penoso pagar a dívida e ver meu herói fenecer ao meu lado. Eu queria salvá-lo, mas aquilo lhe caía como derrota. Não percebi inicialmente que ele ficava olhando para o outro escritor, o que dissera “que homem teria sido Balzac se soubesse escrever”.
Disfarçadamente, anotei um bilhete e pedi ao gerente que o levasse a Flaubert. Quitada toda a dívida de Balzac, saí com ele do banco. Desejei-lhe boa sorte. Queria um abraço, mas não me pareceu adequado. Ele estava cansado, ou conformado. Não iria contrair mais dívida alguma.
E o bilhete? Quando Flaubert o abrisse, naquele momento ou séculos depois, veria: “A leitora sou eu.”
Nota para esclarecimento: Talvez não seja de seu conhecimento que, além de autor de grandes romances, Balzac foi autor de numerosas dívidas. Muitos de seus livros foram escritos com o intuito de transformá-lo num homem rico e há cartas onde ele escreveu que queria empreender ao menos uma vez corretamente para poder deixar de escrever. Balzac foi o primeiro romancista que trouxe a questão do dinheiro na sociedade francesa em transição de um modelo monarquista e nobre, para um modelo republicano e burguês. A consciência que tinha da importância e iniquidade do dinheiro foi que tornou seus romances tão famosos e sua vida tão arduamente construída. Balzac foi um operário das letras – talvez o primeiro. Enquanto isso, Flaubert, uma geração posterior, amealhava o reconhecimento público, em vida, que Balzac almejou. A declaração de Flaubert sobre Balzac, se não for verdadeira, tem chance de sê-lo, pois quem a cita é Umberto Eco, na página 175 de Não Contem com o Fim do Livro. E o bilhete entregue a Flaubert, nessa crônica, remete à famosa declaração do autor sobre sua obra máxima: Mme. Bovary c´est moi, ou seja, Madame Bovary sou eu. Flaubert é considerado o pai da modernização do romance.
escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012
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