sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Por preferir Balzac

Estávamos no Banco da França. Eu não era ninguém, ele era Balzac. Não tinha sido um acaso. Quão poucas coisas podemos reputar ao fortuito! Literatura é ficção científica: eu havia retrocedido anos nos séculos, ele avançado outros tantos, e, portanto, estávamos juntos ante aquela instituição.

- Vim saldar sua dívida, Balzac!, falei.

- Mas por quê?, ele perguntou. Após tantos séculos, será que tinha perdido, afinal, o despudor de emprestar dinheiro? Respondi-lhe que o fazia porque ele precisava ser quem gostaria de ter sido, um homem rico.

Nesse momento, notei um sujeito mais baixo entrando pela porta ao nosso lado. Correu para dentro. Segui-o com o olhar. Reconheci-o antes que fosse cumprimentado pelo gerente. Era Flaubert, o pai. Intuí que tinha vindo sacar de sua poupança, de letras que rendiam tantos juros. Tomei o cotovelo de Balzac, apontando-lhe a porta:

- Entremos, e o dirigi para dentro.

Foi penoso pagar a dívida e ver meu herói fenecer ao meu lado. Eu queria salvá-lo, mas aquilo lhe caía como derrota. Não percebi inicialmente que ele ficava olhando para o outro escritor, o que dissera “que homem teria sido Balzac se soubesse escrever”.

Disfarçadamente, anotei um bilhete e pedi ao gerente que o levasse a Flaubert. Quitada toda a dívida de Balzac, saí com ele do banco. Desejei-lhe boa sorte. Queria um abraço, mas não me pareceu adequado. Ele estava cansado, ou conformado. Não iria contrair mais dívida alguma.

E o bilhete? Quando Flaubert o abrisse, naquele momento ou séculos depois, veria: “A leitora sou eu.”

 

Nota para esclarecimento: Talvez não seja de seu conhecimento que, além de autor de grandes romances, Balzac foi autor de numerosas dívidas. Muitos de seus livros foram escritos com o intuito de transformá-lo num homem rico e há cartas onde ele escreveu que queria empreender ao menos uma vez corretamente para poder deixar de escrever. Balzac foi o primeiro romancista que trouxe a questão do dinheiro na sociedade francesa em transição de um modelo monarquista e nobre, para um modelo republicano e burguês. A consciência que tinha da importância e iniquidade do dinheiro foi que tornou seus romances tão famosos e sua vida tão arduamente construída. Balzac foi um operário das letras – talvez o primeiro. Enquanto isso, Flaubert, uma geração posterior, amealhava o reconhecimento público, em vida, que Balzac almejou. A declaração de Flaubert sobre Balzac, se não for verdadeira, tem chance de sê-lo, pois quem a cita é Umberto Eco, na página 175 de Não Contem com o Fim do Livro. E o bilhete entregue a Flaubert, nessa crônica, remete à famosa declaração do autor sobre sua obra máxima: Mme. Bovary c´est moi, ou seja, Madame Bovary sou eu. Flaubert é considerado o pai da modernização do romance.

 

escrito por Mayra Corrêa e Castro ® 2012

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